Vida simples
* Por
Luciane Evans
Na contramão da
sociedade contemporânea, homens e mulheres optam por uma vida mais simples.
Eles garantem que são mais felizes. Conheça as histórias
Você pode ter passado a
vida inteira, ou parte dela, ouvindo a expressão: tempo é dinheiro. Conhecido
de perto um universo em que ter do “bom e do melhor” é sinônimo de uma vida
sossegada. Também deve ter escutado, e acreditado, que comprar roupas, sapatos
e supérfluos alivia o estresse, principalmente, das mulheres durante a tensão
pré-menstrual (TPM). Que shopping é e será um dos melhores lazeres desta vida
moderna. Agora, suponha que tudo isso virasse de cabeça para baixo. Em nome da
simplicidade do ser, homens e mulheres, de idades diferentes, chacoalharam
esses velhos conceitos cada vez mais impostos à sociedade e optaram, sem culpa
e com leveza, por uma vida simples. Acreditam que precisam de pouco para se
satisfazer e asseguram que o lucro com tudo isso não se vende nem se troca, e
tem nome: felicidade.
Não se trata de um
movimento, mas um fenômeno sem causa única e nenhuma regra. Essas pessoas
estão, aos poucos, caminhando por conta própria em busca da simplicidade, sem
fazer publicidade disso. Alguns mudaram de cidade, outros conseguiram isso
morando em uma capital como Belo Horizonte. E não estão sós. A tal simplicidade
já chama a atenção do mundo, já que grandes homens, que poderiam esbanjar
mordomias, disseram “não” a elas e a tudo que elas remetem. O ex-guerrilheiro
José Mujica, atual presidente do Uruguai, por exemplo, mora em uma casa
deteriorada na periferia de Montevidéu, sem empregado nenhum. Seu aparato de
segurança: dois policiais à paisana estacionados em uma rua de terra.
Outro que recebeu os
olhares do planeta é o papa argentino Francisco, que despertou a simpatia dos
católicos e até mesmo de quem não segue a religião, por quebrar protocolos da
Igreja. Sabe-se que antes de chegar ao cargo mais alto da instituição, no dia
13, quando foi escolhido como papa, ele andava de metrô e ônibus por Buenos Aires
e cozinhava a própria comida. Já como líder do catolicismo, ele dispensou o
carro oficial ao celebrar uma missa e caminhou pelas ruas, aproximando-se mais
do povo.
BONS EXEMPLOS
Mas não é preciso ir a
Roma ou ao Uruguai para conhecer pessoas que apostam nesse modo de vida. O Bem
Viver conheceu bons exemplos dessa vida simples. São guerreiros que nadam
contra a maré em uma sociedade que, cada vez mais, valoriza o supérfluo como a
garantia para ser feliz. “Hoje, o que predomina é o consumismo mais exacerbado,
mas se há grupos buscando essa simplicidade é um sintoma de que essa exaustão
das buscas frenéticas acaba não levando a lugar nenhum”, comenta o psicólogo,
psicanalista e doutor em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Carlos Roberto Drawin.
Certos de que há muito
mais quando se tem menos, os entrevistados para esta reportagem servem como
verdadeiras lições de vida. Maria Madalena Aguiar, de 66 anos, diz ser “feliz
demais” em levar uma vida baseada na simplicidade e acredita, por exemplo, que
está mais perto de Deus. Já Guilherme Moreira da Silva, de 56, mora em um sítio
em Macacos, na Grande BH, e garante que “ser simples” traz a ele conforto,
alegria, prazer e felicidade. A mesma sensação tem Priscila Maria Caliziorne
Cruz, de 23, que ao optar por esse estilo de vida diz ter ampliado sua
consciência, ficando mais inteira e presente na vida. “A simplicidade nos
obriga a olhar para nós mesmos”, comenta o frei Jonas Nogueira da Costa, que
desde menino se encantou pela vida de São Francisco de Assis e adotou a
espiritualidade franciscana. Para a advogada Débora Paglioni, de 23 anos, ser
simples vai muito além de ter dinheiro. “Tem a ver com bem-estar e
consciência”, afirma.
SOMENTE O NECESSÁRIO
Carro, só ser for para
locomoção. Telefone é para se comunicar, não precisa de touch screen nem
aplicativos mirabolantes. Roupas ou sapatos novos somente quando forem de
extrema necessidade, afinal, para quê mais? Comer bem não é ir a restaurante
refinado, mas aquilo que é feito em casa. Ter uma vida simples passa por muitas
dessas posturas, que não são regras.
Mas quem decide viver
com o que é necessário nega o que hoje é tão valorizado, como a corrida
disparada pelos melhores celulares, casa, carros e as mais belas joias. E acaba
consciente de que o tempo e a energia investidos para a aquisição de coisas
podem minguar as oportunidades de conviver com o outro, de buscar a
espiritualidade, autoconhecimento e senso de comunidade. É como se essas
pessoas se abrissem mais para o mundo ao seu redor e dissessem: “Desapeguei”.
Talvez por isso, elas são serenas, sorridentes e leves, vivendo somente com o
necessário, aquilo que para elas é essencial.
Esse desapego e vontade
de viver somente com o que precisa não é algo que a humanidade conheceu hoje. O
psicólogo, psicanalista e doutor em filosofia pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) Carlos Roberto Drawin destaca que esse comportamento é
antigo e vem desde antes do cristianismo. “Vem de uma sabedoria grega. Não é só
no sentido de não ter bens materiais, mas não transformá-los em uma tirania.”
Ele conta que existia uma corrente da filosofia grega, o chamado estoicismo,
que mostrava que o homem só atinge a felicidade se ele for livre, ao se livrar
das dependências dos bens materiais. “Isso foi seguido tanto por um escravo
quanto pelo imperador.”
De tanto desapegar
desses bens, Guilherme Moreira da Silva, de 56 anos, é chamado de Mazzaropi
pelos amigos, em alusão ao cineasta, ator de rádio, TV, de circo, cantor e
diretor Amácio Mazzaropi, que, mesmo rico, foi conhecido como o gênio da
simplicidade. Ele marcou a história do cinema nacional ao mostrar personagens
simples e uma linguagem bem próxima do povo. Guilherme não optou pela arte.
Desde menino, sofria de bronquite e a medicina não lhe dava esperança de cura.
Por meio de uma vida que ele mesmo chama de alternativa, conseguiu se livrar da
doença, desafiando até o diagnóstico médico.
Nascido e criado em
Belo Horizonte, há 30 anos Guilherme se mudou para São Sebastião das Águas
Claras, mais conhecido como Macacos, na Grande BH. Formado em arquitetura e
especializado em paisagismo, ele morou na Espanha por um ano. Mas foi em
Macacos, em um sítio em meio à natureza, que se encontrou. Por 15 anos, morou
ali sem energia elétrica. Ele diz até hoje não comprar roupas e só usar aquelas
que seus irmãos lhe dão. “Não atribuo grandes valores ao materialismo. Tenho
uma caminhonete porque preciso dela para trabalhar.”
Guilherme hoje mexe com
produtos naturais, vende pães integrais e come tudo o que planta. Onde mora não
há internet. “A minha bronquite que me incomodava muito. Queria uma vida
saudável. Esse modelo que adotei tem raízes profundas em querer sobreviver e
gostar da vida. Chegou o momento em que o mais importante era a qualidade do ar
que respirava , o contato com a terra e a comida que comia.”
Em uma casa de
alvenaria sem luxos nem precariedade, Guilherme tem uma televisão, que de vez
em quando é ligada. “A vida pode ser muito mais simples. A busca por ter tudo,
trocar o velho pelo novo, traz desconforto. A sociedade nunca está satisfeita.”
Para ele, a vida no campo traz essa simplicidade, alegria, conforto e prazer.
ESFORÇO
Professor do curso de
ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas), Ricardo
Ferreira Ribeiro diz que hoje as pessoas fazem um esforço danado para ter renda
e, por outro lado, geram um estresse, acúmulo de trabalho e problemas de saúde.
“A opção pela vida simples tem sido mais singela, há menos requinte, mas exige
menos esforços.” Ele lembra que os hippies chegaram a optar por esse modo de
vida, como crítica ao consumismo. “Esse modo de viver aproxima mais as pessoas,
cria-se uma empatia.”
Para o frei Jonas
Nogueira da Costa, de 37, viver com pouco se aprende ao estar perto daqueles
que têm poucas condições financeiras. De família simples e católica, ele sempre
participou das atividades da igreja de Três Rios, sua cidade natal, no interior
do Rio de Janeiro, o que despertou sua vontade de ser padre. Em 1995, entrou
para a Ordem dos Frades Menores, motivado pelo exemplo de São Francisco de
Assis, que dedicou a vida à simplicidade e aos pobres. “A proposta de
simplicidade, de viver como irmão e ter uma vida de oração são pilares que me
encantaram”, diz. A simplicidade para Jonas é entendida como partilha. “Você
não pode chegar a Deus com títulos acadêmicos, roupas e outros. Deus é
simples.”
O frei conta que a
principal mudança que sentiu na sua opção devida foi no conceito de posse. “As
coisas que eram da minha família pertenciam a eles e a mim. Hoje, tenho o
conceito do nosso.” Suas posses, segundo ele, são os livros. Não se importa com
roupas e compra só o necessário. “A simplicidade tem o campo prático e
político. No primeiro, é o contato com as pessoas mais simples e afetos com as
plantas e animais. No segundo, é a denúncia do consumismo que gera
frustrações.”
Ele ensina que a vida
simples permite o contato consigo mesmo. “Nos obriga a olhar para nós mesmos e
ao nos depararmos com o ser humano que somos nos libertamos das grandes
tentações do consumismo.” O grande ganho para o frei é a felicidade como
comunhão, prazer nas pequenas coisas , estar bem consigo mesmo. “Temos que
fazer o que gostamos. A minha opção me faz bem, humano e feliz.”
Para o frei, quem segue
a vida baseada na simplicidade, independentemente da religião, tem que aprender
a escutar os pobres materialmente e socialmente. “Eles são os nossos mestres.
Há muita coisa que dissemos que são fundamentais para nós, e vemos que outras
pessoas conseguem viver sem aquilo. Às vezes temos tudo e não abrimos mão de
nada, e esse pobre consegue sorrir e falar de Deus. Por trás disso, há uma
sabedoria. Não há uma receita pronta para essa vida simples. Cada um tem que
fazer a própria síntese”, aconselha.
Estilos de vida
Existe um movimento
chamado simplicidade voluntária, que é um estilo de vida no qual os indivíduos
conscientemente escolhem minimizar a preocupação com o “quanto mais melhor”, em
termos de riqueza e consumo. Seus adeptos escolhem uma vida simples por
diferentes razões, que podem estar ligadas a espiritualidade, saúde, qualidade
de vida e do tempo passado com família e amigos, redução do estresse,
preservação do meio ambiente, justiça social ou anticonsumismo. Algumas pessoas
agem conscientemente para reduzir as suas necessidades de comprar serviços e
bens, e, por extensão, reduzir também a necessidade de vender o seu tempo.
Alguns usarão as horas a mais para ajudar os seus familiares ou a sociedade, ou
sendo voluntário em alguma atividade.
Compra consciente
Mudar os hábitos de
consumo e só adquirir produtos de que realmente precisa é uma opção de vida de
quem busca ser mais saudável
Não é preciso sair da
capital ou se dedicar integralmente ao sacerdócio para ter uma vida simples.
Essa opção de vida, apesar de a luta ser ainda maior, é bem possível na cidade
grande, mesmo com as tentações do consumo e seus exageros bem próximos. A
simplicidade, muitas vezes, está na essência da alma e em atitudes conscientes,
e não é preciso radicalismo para chegar até ela. O professor do curso de
ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) Ricardo
Ferreira Ribeiro diz que essa opção de vida pode ser uma certa crítica aos
valores ligados à ostentação e ao padrão de vida de pessoas que não conseguem
abrir mão dos bens materiais. “A gente acaba consumindo muitas coisas, para
quê? Qual a finalidade desse bem que se adquire?”, provoca.
Foram essas as
perguntas que motivaram a psicóloga Marina Paula Silva Viana, de 28 anos, a
enfrentar um desafio: um ano sem compras. De junho de 2011 até junho de 2012,
ela não comprou nada de supérfluo e criou um blog na internet relatando sua
experiência durante esse período. A página levou o nome do desafio, Um Ano sem
Compras. Mineira de Belo Horizonte, a jovem mora desde 2008 em Curitiba e
achava que a proposta seria difícil. “O mais complicado é conter o primeiro
impulso. Mas vi que isso é bem possível.” O dinheiro que usava para comprar
roupas, bolsas, calçados e cosméticos foi gasto em lazer. “Sempre gostei dessa
opção de vida, e queria fazer essa experiência. Você percebe que tem outras
prioridades na vida. Passei a fazer mais programas ao ar livre, a aproveitar
atividades intelectualizadas. Quando estamos imersos no consumo, deixamos o que
nos dá prazer em segundo plano. Passada essa experiência, hoje compro bem menos
e me foquei no que é essencial para mim.”
Como psicóloga, Marina
conta que muitos pacientes trazem para o consultório frustrações vindas do
consumo. “As pessoas estão consumindo mais. E isso acaba tendo uma função
psicológica. Ela acabam acreditando que a personalidade está ligada ao que
consomem.” Formada em teatro, produtora do curso de educação gaia em BH e
estudante de letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Priscila
Maria Caliziorne Cruz, de 23, diz que a vida simples vem dos pilares que
recebeu em casa e das suas buscas e anseios. “São escolhas diárias. Encontrei em
BH, no meio urbano, uma alternativa mais simples para viver.”
Ela conta que o segredo
dessa opção está na consciência do que se busca. “Sabemos que ter um telefone é
importante para atender a necessidade. Mas nem sempre essa necessidade por um
produto acompanha moda e o que está no mercado.” Há 10 anos, a jovem não entra
em shopping, pois, segundo ela, é um ambiente que a incomoda, principalmente
pelo objetivo daqueles que estão ali e os tipos de relações estabelecidas.
“Participo de um encontro anual de trocas de roupas. Para a minha alimentação,
participo de redes de agricultura urbana, que são alimentos produzidos na
cidade. Compramos diretamente dos produtores, sai mais barato e não acumula
tanto valores.”
A maior preocupação de
Priscila é com o meio ambiente. Ela procura ter atitudes sustentáveis, como
reciclagem de lixo, usar carona ou transporte público. “Essa opção de vida me
faz sentir em harmonia comigo mesma. Quando fiz essa escolha, é como se tivesse
responsabilidade com as pessoas ao meu redor.” Ela diz que o encontro com esse
modo de vida foi motivado por uma busca de vida saudável, da saúde do corpo e
da mente . “Nunca fiz escolhas motivada pelo financeiro.”
BENS MATERIAIS
Por mais que as quatro
filhas insistam, Maria Madalena Aguiar, de 66 anos, fica bons anos sem comprar
roupas. Prefere consertar as que tem e não se importa com a idade delas. Um
vestido e um tamanco já estão de bom tamanho. Mesmo morando na capital, a
essência, adquirida na infância, na roça e durante os três anos que morou em um
convento em São Paulo, ela mantém intacta e com orgulho. Diz já ter conhecido
muitas pessoas que ostentam bens materiais. “É de dar dó”, comenta.
Certo dia, uma de suas
filhas a chamou para sair. Ela logo pegou a bolsa de pano e disse estar pronta
para acompanhá-la. A filha sugeriu que mudasse de roupa. “Você quer o que visto
ou a minha companhia?”, respondeu Madalena. Apaixonada pelas poesias que cria,
ela conta que prefere andar de ônibus ou a pé a ir de carro. “Temos pernas é
para andar.” Compras com ela, só o essencial. O seu lazer é mexer na terra, com
as plantas e aprender com elas. “A vida simples é uma sabedoria”, avisa. Para
ela, ajudar o outro a ter um coração bom são as grandes riquezas do ser humano.
Madalena conta a lenda
que lhe serve de inspiração. “Uma vez, um turista viajou para conhecer um
grande sábio. Quando chegou, disse a ele que queria conhecer seus móveis. O
sábio, muito tranquilo, mostrou que só tinha uma cama e uma cadeira e o
convidou a entrar. O homem não aceitou, disse estar só de passagem. O sábio
respondeu: ‘Eu também’.” Para essa senhora, a história aponta o que devemos
pensar antes dos bens materiais serem nossos donos. “Caixão não tem gaveta.
Estamos aqui só de passagem.”
Viver com o essencial
Este mês, o New York
Times publicou um artigo sobre a vida de Graham Hill, que vive em um estúdio de
420 pés. Ele tem seis camisas, 10 tigelas rasas que usa para saladas e pratos
principais. Não tem um único CD ou DVD. Era rico, tinha uma casa gigantesca e
cheia de coisas – eletrônicos , carros e eletrodomésticos. “De uma certa forma,
essas coisas acabaram me consumindo”, disse na entrevista. Em 1998, em Seattle,
vendeu sua empresa de consultoria de internet, Sitewerks, por muito dinheiro e
passou a comprar muito. Entre as compras, um Volvo preto turbinado. Mas tudo
isso passou a incomodá-lo e a ficar sem graça. E ele decidiu viver somente com
o essencial.
Reportagem publicada no
jornal “Estado de Minas”.
* Jornalista
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