domingo, 1 de junho de 2014

A rebelião das massas

* Por José Ortega y Gasset

VI

Começa a dissecção do homem-massa

Como é esse homem-massa que hoje domina a vida pública — a vida política e a não-política? Por que é como é, isto é, como foi produzido?

Convém responder às duas perguntas conjuntamente, porque uma esclarece a outra. O homem que tenta se pôr agora à frente da existência européia é muito diferente do que dirigiu o século XIX. Qualquer mente perspicaz de 1820, 1850, 1880, pôde, por um simples raciocínio a priori, prever a gravidade da situação histórica atual. E, de fato, nada de novo acontece que não tenha sido previsto há cem anos. “As massas avançam!”, dizia Hegel, apocalíptico. “Sem um novo poder espiritual, nossa época, que é uma época revolucionária, produzirá uma catástrofe”, advertia Augusto Comte. “Vejo subir a preamar do niilismo!”, gritava o bigodudo Nietzsche, de um penhasco do Engadine. É falso dizer que a história não é previsível. Foi profetizada inúmeras vezes. Se o futuro não oferecesse um flanco à profecia, não poderia tampouco ser compreendido depois de se cumprir e de se tornar passado. A idéia de que o historiador é um profeta no sentido contrário resume toda a filosofia da história. Naturalmente só é possível se antecipar a estrutura geral do futuro; da mesma forma que, na verdade, essa é a única coisa que compreendemos do passado ou do presente. Por isso, quem quiser ver bem sua época deverá olhá-la de longe. A que distância? É muito simples: à distância exata que o impeça de ver o nariz de Cleópatra.

Que aspecto tem a vida desse homem multitudinário, que com progressiva abundância o século XIX vai engendrando? Inicialmente, um aspecto de ilimitada facilidade material. O homem médio nunca pôde resolver com tanta folga seu problema econômico. Enquanto as grandes fortunas minguavam proporcionalmente e a existência dos operários das fábricas se tornava mais dura, o homem médio de qualquer classe social encontrava seu horizonte econômico cada vez mais amplo. A cada dia agregava um novo luxo ao conjunto de seu padrão de vida. Cada dia sua posição era mais segura e mais independente do arbítrio alheio. O que antes teria sido considerado como um benefício da sorte que inspirava humilde gratidão ao destino converteu-se num direito que não se agradece, mas que se exige.

Em 1900 o operário também começa a ampliar e a assegurar sua vida. No entanto, tem que lutar para consegui-lo. Não encontra, como o homem médio, um bem-estar que foi colocado solicitamente diante dele por uma sociedade e um Estado que são um portento de organização.

A essa facilidade e segurança econômica junte-se as físicas: o confort e a ordem pública. A vida segue sobre cômodos trilhos, e não se acredita que aconteça nela nada de violento e perigoso.

Uma situação tão aberta e franca como essa teria forçosamente que sedimentar nas camadas mais profundas dessas almas médias uma impressão vital, que poderia se expressar com o dito tão engraçado e perspicaz de nosso velho povo: “ancha es Castilla”. Isso significa que em todos esses aspectos elementares e decisivos a vida se apresentou sem impedimentos ao novo homem. A compreensão e a importância desse fato surgem automaticamente quando se recorda que essa franquia vital faltou por completo aos homens comuns do passado. Ao contrário, para eles a vida foi um destino premente — no aspecto econômico e físico. Sentiram o viver a nativitate como uma enorme carga de impedimentos que eram obrigados a suportar, sem haver outra solução que não fosse se adaptar a eles, alojar-se nas brechas que deixavam.

Mas a contraposição de situações é ainda mais evidente quando, do campo material, passamos para o civil e o moral. Desde a segunda metade do século XIX, o homem médio não encontra mais nenhuma barreira social. Isto é, tampouco nas formas da vida pública ele encontra ao nascer travas e limitações. Nada o obriga a conter a sua vida. Também aqui “ancha es Castilla”. Não existem os “estados” nem as “castas”. Não há ninguém com privilégios civis. O homem médio aprende que todos os homens são legalmente iguais.
Jamais em toda a história o homem tinha sido colocado numa circunstância ou contorno vital que se parecesse, ainda que de longe, com o determinado por essas condições. Trata-se, de fato, de uma inovação radical no destino humano, que é implantada pelo século XIX. Cria-se um novo cenário para a existência do homem, novo no físico e no social. Três princípios tornaram possível esse novo mundo: a democracia liberal, as experiências científicas e o industrialismo. Os dois últimos podem ser resumidos num só: a técnica. Nenhum desses princípios foi inventado pelo século XIX, mas são procedentes dos séculos anteriores. A honra do século XIX não se estriba na sua invenção e sim na sua implantação. Ninguém desconhece isso. Mas não basta um reconhecimento abstrato; é preciso que se tome consciência de suas conseqüências inexoráveis.

O século XIX foi essencialmente revolucionário. Mas esse seu aspecto não deve ser configurado no espetáculo de suas barricadas, que por si só não constituem uma revolução, e sim no fato de ter colocado o homem médio — a grande massa social — em condições de vida radicalmente opostas às que sempre o haviam rodeado. A existência virou do avesso. A revolução não é a sublevação contra a ordem preexistente, mas a implantação de uma nova ordem que contraria a tradicional. Por isso não há exagero algum em se dizer que o homem engendrado pelo século XIX é, para todos os efeitos da vida pública, um homem à parte de todos os outros homens. O do século XVIII se diferencia, é claro, do dominante no XVII, e este do que caracteriza o do XVI, mas todos eles são parentes, similares e ainda idênticos quanto ao essencial se esse novo homem for confrontado com eles. Para o “vulgo” de todas as épocas, “vida” significava, antes de tudo, limitação, obrigação, dependência; em uma palavra: pressão. Ou, caso se prefira, opressão, desde que esta não seja entendida apenas como jurídica e social, esquecendo-se a cósmica. Porque esta última é a que nunca faltou até cem anos atrás, quando começa a expansão da técnica científica — física e administrativa —, praticamente ilimitada. Antes, mesmo para o rico e poderoso o mundo era um âmbito de pobreza, dificuldade e perigo (1).

O mundo que rodeia o homem novo desde seu nascimento não faz com que ele se limite em nenhum sentido, não lhe apresenta nenhum veto nem contenção, mas, ao contrário, fustiga seus apetites que, em princípio, podem crescer indefinidamente. Pois acontece — e isso é muito importante — que esse mundo do século XIX e começo do século XX não só tem as perfeições e amplitudes que efetivamente tem, como, além disso, sugere a seus habitantes uma segurança inabalável de que amanhã será ainda mais rico, mais perfeito e mais amplo, como se gozasse de um espontâneo e inesgotável crescimento. Ainda hoje, apesar de alguns sinais que indicam uma pequena brecha nessa fé absoluta, ainda hoje muito poucos homens duvidam de que os automóveis daqui a cinco anos serão mais confortáveis e mais baratos que os atuais. Acredita-se nisso como se acredita no próximo nascer do sol. A comparação é exata. Porque, de fato, o homem vulgar, ao se encontrar com este mundo de técnica e socialmente tão perfeito, pensa que foi criado pela Natureza, e nunca se lembra dos esforços geniais de indivíduos excepcionais que a sua criação pressupõe. Menos ainda admitirá a idéia de que todas essas facilidades continuam se apoiando em certas virtudes raras dos homens, cuja menor falta ocasionaria o imediato desaparecimento dessa magnífica construção.

Isso nos leva a apontar no diagrama psicológico do homem-massa atual dois primeiros traços: a livre expansão de seus desejos vitais, portanto, de sua pessoa, e a radical ingratidão para com tudo que tornou possível a facilidade de sua existência. Essas duas características compõem a conhecida psicologia da criança mimada. E, de fato, quem a utilizasse como quadrícula para ver através dela a alma das massas atuais não erraria. Herdeiro de um passado longo e genial — genial de inspirações e de esforços —, o novo vulgo foi mimado pelo mundo à sua volta. Mimar é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada. A criança submetida a esse regime não tem noção de seus próprios limites. Por se evitar qualquer pressão à sua volta, qualquer choque com outros seres, chega a acreditar efetivamente que só ele existe, e se acostuma a não considerar os demais, principalmente a não considerar ninguém como superior a ele. Essa sensação de superioridade alheia só lhe poderia ser proporcionada por quem, mais forte que ele, o obrigasse a renunciar a algum desejo, a se restringir, a se conter. Assim teria aprendido esta lição essencial: “Ali eu paro e começa outro que pode mais que eu. No mundo, pelo visto, há dois: eu e outro superior a mim.” Ao homem médio de outras épocas essa sabedoria elementar era ensinada cotidianamente por seu mundo, porque era um mundo toscamente organizado, onde as catástrofes eram freqüentes e não havia nada seguro, abundante nem estável. Mas as novas massas encontram uma paisagem cheia de possibilidades e, além de tudo, segura, e tudo isso rápido, à sua disposição, sem depender de seu esforço prévio, como o sol se encontra no alto sem que tenha sido preciso que o levantássemos nos ombros. Nenhum ser humano agradece a outro o ar que respira, porque o ar não foi fabricado por ninguém: pertence ao conjunto do que “está aí”, do que dizemos “é natural”, porque não falha. Essas massas mimadas são bem pouco inteligentes para acreditar que essa organização material e social, posta à sua disposição como o ar, é da mesma origem que este, já que, pelo visto, também não falha, e é quase tão perfeita como a natural.

Minha tese é, portanto, a seguinte: a própria perfeição com que o século XIX organizou certas esferas da vida é a origem do fato de que as massas beneficiárias não a considerem como organização, mas como natureza. Assim se explica e se define o absurdo estado de ânimo que essas massas revelam: não se preocupam com nada além de seu bem-estar e ao mesmo tempo não são solidárias com as causas desse bem-estar. Como não vêem nas vantagens da civilização uma invenção e uma construção prodigiosas, que só podem ser mantidas com grandes esforços e cuidados, acham que seu papel se resume em exigi-las peremptoriamente, como se fossem direitos naturais. Nas agitações provocadas pela escassez as massas populares costumam procurar pão, e o meio que empregam costuma ser o de destruir as padarias. Isto pode servir como símbolo do comportamento que, em proporções mais vastas e sutis, têm as massas atuais para com a civilização que as alimenta (2).

Notas

1.         Por mais rico que um indivíduo fosse em relação aos demais, como a totalidade do mundo era pobre, a esfera de facilidades e comodidades que sua riqueza podia lhe proporcionar era muito reduzida. A vida do homem médio de hoje é mais fácil, cômoda e segura que a do mais poderoso homem de outros tempos. O que importa não ser mais rico que os outros se o mundo lhe proporciona magníficos caminhos, estradas de ferro, telégrafo, hotéis, segurança física e aspirina?

2.         Abandonada à sua própria inclinação, a massa, qualquer que seja, plebéia ou “aristocrática”, tende sempre, no afã de viver, a destruir as causas de sua vida. Sempre me pareceu uma caricatura muito engraçada sobre tendência a propter vitam, vivende perdere causas, o que aconteceu Níjar, cidade perto de Almeria, quando em 1759 Carlos III foi proclamado rei. A proclamação foi feita na praça da cidade. “Depois mandaram trazer de beber a todo aquele grande ajuntamento, que consumiu setenta e sete arrobas de Vinho e quatro odres de Aguardente, cujos espíritos os aqueceu de tal forma, que com repetidos vivas se dirigiram ao depósito, de cujas janelas jogaram o trigo que havia nele e 900 reais de suas Arcas. Dali foram para o Estanco do Tabaco e mandaram tirar o dinheiro da Mesada, e o tabaco. Fizeram a mesma coisa nas barracas, mandando derramar, para confirmar sua autoridade, todos os gêneros líquidos e comestíveis que havia nelas. O Estado eclesiástico concorreu com igual eficácia, pois, aos gritos, induziu as Mulheres a jogarem fora tudo quanto havia em suas casas, o que executaram com a maior despreocupação, pois nelas não restou pão, trigo, farinha, cevada, pratos, caçarolas, almofarizes, pilões, nem cadeiras, ficando a dita cidade destruída.” Segundo um documento da época em poder do senhor Sánchez de Toca, citado em Reinado de Carlos III, por don Manuel Danvila, vol. II, p. 10, nota 2. Essa cidade, para viver sua alegria monárquica, aniquila-se a si mesma. Admirável Níjar! O futuro é teu!

Tradução de Marylene Pinto Michael


* Filósofo, jornalista e ativista político espanhol.

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