Inundação
* Por
Marco Albertim
O ramo de papoulas, tão
viçoso quanto a gameleira que lhe dava sombra, por certo ouviu o gemido da
caminhonete que estacionara na orla da floresta. A gameleira nem tanto, visto
que as centenas de cepos sustentando a enorme copa, davam conta de uma rochosa
adesão ao chão duro de raízes, e assim mesmo pronto para novas semeaduras. O
Fargo, tão exausto quanto a corcunda de Antônio Melício, estacionara soltando
guinchos entre as fendas em retângulo, de um lado e de outro da capota do
motor.
- Desce todo mundo! - ordenou Antônio Melício,
depois de apear do estribo ao lado do volante.
Fabrícia dos Santos
também tinha um arco nas costas, àquela altura tão redondo que os peitos não
careciam de sutiã para dar apoio aos mamilos mirrados. A filha já passara dos
vinte e cinco anos. A prenhez dos primeiros meses, em vez de entesar o busto,
arqueara mais ainda o costado escasso. Fosse pela prenhez ou pela ausência do
parelho que fugira para não ter que casar, certo é que Augusta dos Santos tinha
o rosto de um branco vincado de cima a baixo, com manchas marrons, feito sinais
imprecisos.
Da carroceria de
madeira, Feliciano, o filho mais velho, foi o primeiro a descer para ajudar o
casal mais novo de irmãos, com doze e treze anos, feições anêmicas, acentuada
dependência do pai e da mãe nos modos, por conta do parto temporão.
Toda a família se
abrigou sob a gameleira. As crianças, vendo os pais atentos às águas
desrepresadas da barragem, agarraram-se aos cepos cujo diâmetro cabia em suas
mãos. O ramo de papoulas fora poupado dos passos e pés desengonçados dos seis.
E a chuva vinda da infinitude plúmbea acima da copa da gameleira, inda que
fina, guinchava chorosa e vingativa, feito as águas soltas da barragem.
O vale abaixo,
independente das estações, cobria-se todo ano da vegetação fechada do mato, da
floresta com gameleiras com mais de vinte metros de altura. Entre as duas orlas
do matagal, a estrada de piçarra vermelha deixava-se ondular conforme os cortes
onde a vegetação se mostrara menos inóspita. Abaixo, de onde viera a família de
Antônio Melício, Petrolândia fora evacuada para dar lugar ao curso ininterrupto
das águas da Barragem de Itaparica. Os seis viviam do que podiam roçar num
hectare de terra, a pouco mais de cinco quilômetros de Petrolândia. A terra
fora arrendada, não lhes pertencera. O dono, com a escritura, fácil obteve
empréstimo no banco para a compra de outra casa, em Petrolina; casa pequena,
inda que com acomodação bastante para uma família com recursos médios. Antônio
Melício, sem posses nem outros recursos, sequer foi a um banco, nunca trocara
palavra com algum gerente. Petrolina, distando 250 quilômetros dali, em linha
reta, e 360 numa viagem de quase cinco horas. Também não conseguira se
inscrever na lista do governo para se tornar morador de uma casa em Nova
Petrolândia.
- A água já ocupou a
rua da feira. O armazém de Miguel, a barbearia de Felinto Broca, até a casa do
padre Aroucha, tudo foi invadido pela água.
Antônio Felício saíra
do hectare onde plantara inhames e feijões, sem acreditar que também as covas
onde deixara as manivas para a mandioca, seriam cobertas pelas águas.
O curso das águas,
lento, só às cinco da tarde mostrou a superfície barrenta, gelatinosa, em torno
da torre da igreja. A cimeira da cruz parecendo uma bênção divina a quem se
deixara se despossuir dos bens já velhos, por isso mesmo entranhados na memória
de cada um.
Ninguém chorou, a não
ser Augusta dos Santos cuja palidez do rosto úmido da chuva, não se alumiou
quando o pai disse que em Tacaratu, a quinze quilômetros dali, ela podia parir
o filho do pai sumido.
- Queria que Firmino
estivesse aqui - disse, lembrando-se do namorado.
- Nós tamos arribando
das águas. Seu namorado arribou pra não casar com você - disse o pai.
Sob a gameleira
montaram acampamento. Fizeram fogo para cozinhar o músculo de boi temperado na
véspera. Augusta dos Santos não quis comer, mesmo com a insistência da mãe.
Dormiu embalada com o perfume das papoulas. De manhã, gemeu com o começo das
contrações.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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