sexta-feira, 31 de julho de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos e quatro meses.

Leia nesta edição:

Editorial – Inesquecível paixão por um mito de dois mundos.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, trecho de livro, “O homem que falava inglês”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, microcontos, “Pílulas literárias 214”.

Coluna No Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “O vomplô dos cafajestes”.

Coluna Clássicos – Francisco de Assis Barbosa, ensaio, “Julgamentos sobre o Isaías Caminha”.

Coluna Porta Aberta – Emir Sader, artigo, “A variável Lula”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


  
Inesquecível paixão por um mito de dois mundos


O romance “A casa das sete mulheres”, da gaúcha Leticia Wierzchowski, destaca não somente uma única personagem feminina inesquecível, como na maioria das histórias que tratei nesta minha já longa série, mas sete: Antônia, Caetana, Rosário, Ana, Perpétua, Manuela e Mariana. Como esquecer esse grupo heterogêneo, esse hepteto confinado por toda uma década no interior da Estância da Barra, de difícil acesso para garantir sua segurança, propriedade do patriarca da família, Bento Gonçalves, mítico líder e herói da Revolução Farroupilha?! Sim, como? Todas as sete têm sua importância na história e o papel de protagonistas. Só quem não tivesse sensibilidade as esqueceria. Aliás, este sequer leria o primoroso romance histórico de Letícia, entre os melhores no gênero da rica Literatura brasileira.

A bem da verdade, não há apenas sete personagens femininas inesquecíveis no enredo, mas oito, pois não se pode esquecer de Anita Garibaldi, que embora praticamente não apareça na trama, é relevante, por conquistar Giuseppe Garibaldi, o mito, o grande herói de dois continentes, o inesquecível amor da vida de Manuela. Embora nas 509 páginas do romance – que a gente lê de um só fôlego, lamentando quando chega ao final, pelo atrativo e gostoso estilo da autora – Letícia trate das batalhas, conflitos, dificuldades e tudo o que cercou esse importante episódio da História do Brasil, sobretudo do Rio Grande do Sul, o foco central está, mesmo, naquelas sete mulheres. Está nos seus amores. Está nos seus ciúmes. Está em suas alegrias, tristezas, temores e expectativas e não de um único dia, de uma semana ou mesmo de um mês, mas de dez anos!!! Centra-se, por exemplo, nas incertezas e desencontros do relacionamento de Rosário e Steban. Ou na paixão incontida e enlouquecedora de Mariana e João Gutierrez. Enfim, nas esperanças e desesperos de todas aquelas sete mulheres. E, sobretudo, no amor de Manuela e Garibaldi, que a gente torce o tempo todo para que tenha um “happy end”, mas que termina em renúncia e saudade.

Apesar da objetividade de Letícia, todo esse conjunto de dramas e conflitos é narrado com realismo, é verdade, mas com ternura, de uma forma envolvente, delicada, pura, poética até. Sem nenhum exagero, “A casa das sete mulheres” é um imenso e bem composto poema épico. Embora as sete protagonistas sejam sumamente importantes, uma delas se destaca e, para mim, é a personagem feminina inesquecível, de fato e de direito (com a ressalva que se alguém eleger qualquer das outras seis, estará bem eleita). Refiro-me a Manuela.

A própria autora deixa esse destaque implícito ao dividir o livro em duas partes, que são intercaladas. Numa delas, relata como era a vida na Estância da Barra, com a ausência dos homens da casa. Na segunda, apresenta-nos o diário de Manuela, em que ela relata, na primeira pessoa, suas angústias, alegrias, sonhos de amor por Garibaldi, a quem ela hesitou em seguir, acabando, por conseqüência, por perdê-lo para sempre para Anita Garibaldi, que o seguiu até mesmo para a Itália, findo o conflito gaúcho, onde também se destacou na luta pela unificação daquele país. Em um de seus relatos, tão íntimos e pessoais, ela registrou: “Fui talhada para ser de um único homem, e serei dele eternamente. Mesmo que nunca nos casemos, mesmo que a guerra ou o destino o leve para longe de mim, permanecerei esperando-o até quando for necessário, até a eternidade”. E foi o que fez.

Em outro registro, Manuela detalha como perdeu Giuseppe Garibaldi e as conseqüências emocionais que sofreu com a perda: “Foram dias de um vazio cruel para mim. A proibição do nosso noivado me trouxe doenças e uma fraqueza que assustou minha mãe. D. Antonia preparou chás e compressas; eu não melhorava por teimosia. Não era justo que me obrigassem a casar com um primo que eu não amava enquanto Giuseppe tanto ardia em estar comigo. D. Antônia falou-me francamente que tinha pena daquele malogro amoroso, mas que era o único caminho e que um dia eu agradeceria a decisão de meu tio e de minha mãe”.

Mais adianta, Manuela acrescenta: “ Para a tia, havia o certo e o errado, nada fora disso. Respondi-lhe que ela mesma tinha conhecido a felicidade mui brevemente, e que dela se havia esquecido havia tempos, portanto eu a perdoava, mas que nunca mais seria feliz. E nem me casaria com outro que não fosse o meu Giuseppe. D. Antônia fitou-me com os olhos rasos d’água e não disse mais nada, restou em silêncio, aplicando compressas em minha testa febril. Muito depois, quando saía desse quarto, sussurrou: ‘Um dia, isso tudo passa, filha. Vosmecê vai ver’”. Passou e não passou. Restou a Manuela a lembrança de um amor frustrado, que nunca se perpetuou.

Pungentemente belo é mais este relato de Manuela, em seu diário, sobre como toda aquela saga de heroísmo, sangue e morte acabou: “Restei eu, como um fantasma, para narrar uma história de heróis, de morte e de amor, numa terra que sempre vivera de heróis, morte e amor. Numa terra de silêncios, onde o brilho das adagas cintilava nas noites de fogueiras. Onde as mulheres teciam seus panos como quem tecia a própria vida. Ah, mas isso tudo levou muito tempo, tempo demais… Naqueles dias, meus cabelos ainda estavam crescendo. Naquele tempo ainda tínhamos muitos sonhos”. Esse trecho, convenhamos, não comporta comentários ou observações. É ou não é um final adequado para um magnífico poema épico, posto que em prosa?!!!

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk 


O homem que falava inglês


* Por Urariano Mota

Filadelfo era vítima do próprio talento. A sua via-crúcis fora construída pelo inegável gênio de que era possuído. Mas como? Mas como assim, se isso vai de encontro, é uma oposição a tudo quanto nos ensinam sobre o valor da educação e do trabalho? Se as ideias gerais, abstratas em conceito irrefutável, faltam a esta narração, não deve faltar o entendimento do que aumentou a desgraça de Filadelfo. Para um, digamos, simples mestiço, neto de escravos, que fora guia de cego na infância, possível abusado por adultos, para esse gênero de ser, era uma vitória ter atingido o ponto em que o vemos em 1958.

Muita água, muita concessão, muita vileza, daquela que possui toda sobrevivência, que se faz à custa da própria honra, Filadelfo havia passado. De servidor para todas as horas de mariners durante a guerra, de agenciador de putas a criado de quarto, vale dizer, serviçal de camarote, de limpador de escarro em lixeira a pequeno ladrão, de testemunha de homicídios a explorador da própria mãe, essas coisas fundas que sem voz embargada não se falam, o Filadelfo que agora sai dos conselhos e purificações do padrinho Manoel de Carvalho já havia passado. Se retiramos da palavra toda carga irônica, ele era um vitorioso. Se conseguimos expurgar a destruição que implica a palavra, o seu corpo era uma vitória. Vitória pelo esforço, sorte e circunstâncias, seria bom termo, se fosse verdadeiro. A essa vitória o espírito do padrinho, se lesse estas linhas, sorriria fino, contido: “hum, hum…”. Para chegar a este ponto, a esta casinha, de onde ele sabe estar pronto para vôos mais altos, houve um acúmulo de informações, de safadezas, que também fazem uma educação, apesar de não escrita nos livros didáticos da escola formal. Ninguém jamais lerá: “Homem, trai o teu pai, a tua mãe, teus amigos, teus melhores sentimentos. Homem, trai tua pátria. Trai, trai, e teu será o mundo”. Isso não se diz, pelo contrário, isso escreve como uma tentação do Diabo a Jesus Cristo no alto do monte, mas como uma promessa enganosa que a sabedoria divina vence. Ou seja, onde se lê por metáfora há um fundo virtuoso, mais enganoso que o mundo de riqueza descortinado por Satanás.

Mas ora, não ora, de rezar. Ainda que pouca, aquela casinha às seis horas da manhã era lugar e condição de vitória. Se mascarada, como nos relatos dignificantes, seria prova do quanto a instrução – o aprendizado prático do inglês – pode erguer um homem. No entanto, é da natureza do conhecimento não se conter em limites provisórios. É da sua irreprimível pulsão o querer mais, o ir adiante, inesgotável e incessante. Assim é, sempre insatisfeito, ou conhecimento não será. Estava, portanto, escrito. Mas com algumas advertências, que o gênio de Filadelfo jamais adivinharia, pois não era o gênio de Deus em sua infinita onividência: o sistema que premia o saber é o mesmo sistema a impor limites que estão na sua própria natureza de brutalidade, morte e violência. O prêmio social é pela exclusão. Se não antes, depois. E sempre nos limites de cor, história e classe, pensava Jimeralto, ao receber na reflexão um cheiro de Filadelfo, do suor de Filadelfo, de carne de gente que se mistura à processada em latinhas da Wilson.

Mas como, se os limites estavam diluídos? O que é um sistema, uma máquina de etiquetas classificadoras? Miseráveis aqui, pobres ali, proletários neste lugar, burgueses  adiante? Não, a coisa – a separação de gente – não se dava nem como no poema de João Cabral, que fala de gavetas funerárias, de ruas diferentes de pobres e ricos no cemitério de Santo Amaro. Restos de mercadorias caras e baratas, não é isso. Um homem podia então, como pode ainda hoje, ascender, mudar de posição, sair da miséria e se tornar, até, um burguês. Ainda que exceção, tal vitória, sob o riso de Manoel de Carvalho, hum, hum, hum…, é possível. Os limites de Filadelfo não se davam nem pela cor que, desejasse ou não, o acompanhava aonde fosse, pois a cor era uma roupa que o vestia por cima da sua camisa de seda. “Aquele negro metido a lorde”, diziam-no. O gênero negrinho chic, se era um limite à vista, não foi bem a causa da sua desgraça. Pois há negrinho chic, negrinho metido a lord, negrinho até presidente de Academia de Letras. Mesmo que não se integre como um indivíduo normal em um grupo seleto, pois é acintosa a presença de uma ovelha negra em um rebanho de ovelhinhas brancas, terminam por lhe conceder a honra, cercado de olhares atravessados. “Sim, é um negro, mas…”, e a conjunção adversativa o salva da vala comum. Aquela aceitação eivada de constrangimento, sob invocação disciplinadora, “eu não tenho preconceito, ele pode ser uma boa pessoa”, ou a frase do virtuoso non-sense “coisa mais natural, um negro dono de um Mercedes”, sim, do cômico ao odioso fingimento, tais manifestações não foram o daqui não passarás, volta a teu lugar, negro safado.

A desgraça, a expulsão de Filadefo direto para o inferno, foi destino do gênio e gênero do seu talento. Onde outros, de sua cor e classe, chegavam a um patamar elevado e se recolhiam modestos e humildes – com esperteza, é certo, porque um homem tem consciência do próprio valor –, onde indivíduos de passado de exclusão pediam desculpas nos gestos, na fala, no tom, uma vez que estavam em uma posição tida como inadequada, Filadelfo, não: abria as portas, escancarava a entrada, sentava-se no trono e parecia dizer, em atos e feições, apontando pretendentes que reclamavam trono semelhante:

– Os inadequados são eles. Este cetro, esta casa e este poder são meus, sob o mais estrito critério de merecimento.

Uma loucura, palavra que os privilegiados de fortuna e sangue chamavam de “uma descabida provocação”. Aquele negro, como ousava? Em guerra, a ilusão de Filadelfo se dava ao acreditar que por força da sua inteligência, do seu trabalho, da sua vontade, o mundo se abria para ele. O sol nasceu para todos, dizia, repetia-se, não bem para expressar que o sol iluminava mendigos e reis igualmente, mas para dizer que os raios do sol podiam ser arrancados por quem os conquistasse. E os conquistadores eram negros, brancos, amarelos, pardos, índios, netos de escravos, todos que tivessem suficiente força de vontade. Pois a maravilha da vontade fazia o mundo ser justo. “Hum, hum, hum…”. Como podia um homem tão machucado ser tão estúpido? Ou será, para entendimento mais exato, que existe um limite para a aceitação da dor, da merda de vida em nossa própria imagem? Naquela altura do beco, em que conversava com Manoel de Carvalho às seis da manhã, ele já era o homem que melhor falava inglês no Recife. Falar, comer, orientar navios sem megafone no cais, em lugar de um prático naval, mais beber, gargalhar, todas essas mostras e exibições de inglês ninguém fazia tão bem quanto ele no Recife.

Como um pistoleiro do oeste americano, como um herói dos filmes de faroeste, ele não cansava de se medir, de provocar, de corrigir e fazer perguntas aos mais nobres e privilegiados falantes da língua. Se cruzasse o seu caminho um acadêmico, um advogado, um médico, um doutor, enfim, lá estava Filadelfo a se mostrar, a se exibir, impiedoso para os portadores de diplomas de toda e qualquer natureza:

– Não, esta frase não se fala. Ninguém fala assim, Você aprende isso nos livros. A fala na América é outra. No Texas, em Chicago, em New York…

Era cômico, vexatório – para ele uma vitória – ver os cidadãos médicos se tornarem pálidos, brancos sem cor, diante da lição que os desarmava, e lhes dizia além da fala: “Olha, este negro aqui sabe muito mais que você. E lá vai um golpe mais de nocaute”. Eles, os privilegiados de nascimento e fortuna, iam à lona. Caíam com um olho de raiva, incrédulos: “O que vejo? Como pode? É um trapaceiro”. E beijavam o chão do ringue. Mas uma conta passavam a carregar para um acerto futuro com Filadelfo.

Com os populares, com os conhecedores de inglês como ele da beira do cais, o trato era outro. Eles apanhavam de Filadelfo por força mesmo do gênero do aprendizado deles da língua. Enquanto os consertadores de sacos de carga furados, enquanto os estivadores, os arrumadores de fardos de açúcar empunhavam um inglês imediato, do “estou com fome”, “dê-me isto” ou “tu queres sexo? eu sei onde tem sexo”, e assim falavam e se dirigiam a trabalhadores gringos de mesma condição que eles, Filadelfo, por ambição servil, aprendera a falar com os de condição mais alta, os oficiais na segunda guerra, e depois com os comandantes de navios mercantes. Ou seja, sem desconhecer o baixo inglês, conhecia os modos e frases de gente mais educada. A isso ele se impôs uma escola de língua, um aprendizado que somente 50 anos adiante Jimeralto pôde entender o acerto. Filadelfo ia ao cinema para acostumar os ouvidos. Lá chegando, encostava a cabeça no espaldar e fechava os olhos. Apesar de no começo desse método muita fala fosse incompreensível, ele captava os volteios, o ritmo, a entonação, o acento, com uma mente plástica e ágil. Assim posto, ficava com o cérebro que era ele todo, de olhos fechados e em absoluta atenção, aprendendo e pagando caro pelas imagens do filme perdido, sem se importar com as legendas na tela que poderiam dispersá-lo.

Os processos mnemônicos também eram empregados. Mesmo sem saber o nome desse caminho de aprendizagem, nem como isso se dava, a sua intuição o guiava para uma ciência antes da ciência. Pois dizia e contava para os encantados com a sua facilidade para línguas:

– A primeira palavra que aprendi em inglês foi “I”. Eu me disse: “engraçado, quando a gente tem dor, grita: ai!. Eu em inglês é ai Engraçado. Ai, eu!”.

A sua história voltava para a nova língua. Era um aprendizado que envolvia todo o ser. Às dificuldades naturais, de sua condição, ele respondia com as conquistas multiplicadas por sua vontade e inteligência. Aprender o inglês não era então uma coisa à parte, de horas arquivadas do dia, era e se tornou em determinado ponto de sua vida uma, mais que uma, a razão de viver. “No inglês ele é um maníaco, um tarado”, diziam dele os inimigos. No que, descontado o desprezo, tinham razão. Movido pela vontade de comer – atenção, abstratos, atenção, formais, atenção, só espíritos, a fome é uma pedagogia primária que move para os mais finos conhecimentos –, ele passou a misturar a língua ao leite, pão, feijão, arroz, ovos, roast beef e concluiu: “a língua é boa”. Passou a amar aquela material, desejá-la, querê-la, com todos seus lixos, caralhaços, sangue e virtudes. De cambulhada assimilou a bandeira norte-americana, pois o inglês era a pátria do império, sobre as listras vermelhas e estrelas do pano; passou a gostar dos rostos gringos dos States, aos quais assimilava sem deixar de lhes perceber a diferença; a ser fascinado pelo modo de vida da  gente dos Estados Unidos, a quem copiava com toda sorte de bugigangas que pudesse trazer dos navios; e por força da ideologia desse mundo, ganhou um novo e repugnante anticomunismo, que era a mais caricatural propaganda da guerra fria…

Do mau e do bom, do bem e do mal a sua competência linguística era feita. Em lugar da ilusão que crê no aperfeiçoamento espiritual somente pelos livros, como se a educação se desse por partenogênese, dos livros para os livros, da escola para a escola, de citações para as citações, uma autorreprodução de ensino formal, ele punha em seu aprendizado toda a ganga bruta de que é feita a sobrevivência. “Com toda a vontade”, ele poderia dedicar numa foto que espelhasse tal esforço. E nisso vinha uma dor fina em Jimeralto, uma vergonha misturada a raiva, por ter nas veias um sangue, um lodo de tamanha magnitude. Pois era fatal, inegável, o filho se diz de passagem, enquanto rola na cama lá no alto da Pensão 13 de Maio, ele se diz sem ver, enquanto tenta a leitura de John Reed com o mesmo fervor com que lia as vidas dos santos na infância, era claro que essa passagem do garçom para o intérprete de inglês se dava pela traição dos valores de seu povo e nação.  

*De O filho renegado de Deus,  prêmio de romance do Guavira de Literatura 2014.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


Pílulas literárias 213


* Por Eduardo Oliveira Freire


LAURA, A ZELOSA

Sempre cuidou muito da filha Aline, mas quando dormia um pouco de tarde, não via a menina pular da janela do quarto para brincar com a vizinha.
Um dia, o pai da vizinha apareceu na porta de Laura, dizendo que a filha dele estava grávida. Laura olhou para Aline e desmaiou de choque. Pois, tudo que construíra ruiu.
Aline era um rapaz. Mas, ele lhe deu várias netinhas que amavam ficar sob os cuidados da avó Laura, a zelosa.

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LUCRÉCIA, A AMIGA

Muito preocupada com as amigas, ficava primeiro com os rapazes que elas se interessavam para ver se eram dignos delas.

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TALITA, A SANGUINÁRIA

Tornava-se cada vez mais delicada e serena quando terminava de escrever mais um romance sobre personagens brutais e assassinos.

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CLARICE, A CUIDADORA

Cuidava do pai com muito carinho, mesmo quando o senhor dava muito trabalho devido à senilidade. Na verdade, ela queria que o pai vivesse muito. Era a realização de sua vingança ao ver a imagem do déspota da família reduzido a nada.

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* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/



O complô dos cafajestes


* Por Rodrigo Ramazzini


- Amor! Você realmente me ama?
- Amo!
- Por que então não demonstra? Por que não fala com o meu pai e assume o nosso namoro?
- É que...
- O seu amigo Leandro mal começou a relacionar-se com a minha irmã e disse-lhe que logo falará com o pai...
- Ele disse isso?
- Falou também que irá aos noventa anos do meu avô. Festa que, diga-se de passagem, você não falou que não freqüentaria.
- Volta um pouco. O Leandro pedirá a sua irmã em namoro para o seu pai. Foi isso que você disse?
- Isso mesmo!
- Sei!
- E mais...
- Tem mais?
- Ele falou que lhe procuraria para vocês conversarem, antes dele apresentar-se ao pai.
- Conversar sobre o quê?
- Oi! Planeta terra. Brasil. Rio Grande do Sul. Acorda Diego! Olha sobre o quê? Sobre o que estamos falando?
- Sobre o Leandro.
- Aí meu Deus! Vou simplificar, ou melhor, vou lhe adiantar o assunto que ele tratará com você. O Leandro lhe convidará para ir conhecer a minha família juntamente com ele.
- Ele disse isso?
- Falou! Ele só não foi à minha casa ainda porque quer falar com você primeiro.

 E o Diego, passando a mão no queixo, pensou: “Bom garoto! Como combinado. Ganhamos no mínimo mais dois meses”. Sorriu. E redargüiu, beijando a testa da namorada:
- Pode deixar amor que eu falo com ele...


* Jornalista e contista gaúcho

Julgamentos sobre o Isaias Caminha


* Por Francisco de Assis Barbosa

"Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis e dignas de castigo”. (Recordações do escrivão Isaías Caminha, 1909.)

Não se confirmaria, de modo nenhum, o vaticínio de Antônio Noronha Santos, segundo o qual depois de publicado o primeiro livro tudo havia de mudar, para melhor, inclusive na Secretaria da Guerra. Às palavras carinhosas do amigo, o amanuense opunha fatos concretos. Fora preterido uma vez. Viera depois a reforma da repartição, na gestão Hermes da Fonseca. Continuaria esquecido.

"Projetam-se promoções - dizia, em carta a Santos e eu serei de novo preterido." Já se sentia então definitivamente incompatibilizado com a vida burocrática. "Ando imaginando o meio de sair daqui", acrescentava, para concluir na mesma carta em tom de quem, neste particular, não esperava mais nada: "eu penso que o meu livro em nada servirá para evitar futuras preterições."1

Sabia de antemão que o Isaías Caminha não poderia melhorar, para ele, o ambiente na repartição, nem lhe daria prestígio junto aos chefes. Era um livro áspero e amargo, com páginas fortemente agressivas contra as instituições, a sociedade, os preconceitos, o Exército. Um livro assim não agradaria jamais aos que põem e dispõem das situações e dos empregos públicos, os quais, em geral, desejam a vida dos protegidos pautada dentro de regrinhas convencionais. Só os bons-moços, medíocres e bem comportados, conseguem despertar-lhes simpatias. Os inquietos, os insatisfeitos, os rebelados do tipo de Lima Barreto não os atraem.

É claro que uma promoção a segundo oficial a reforma Hermes transformara-o apenas de amanuense em terceiro oficial, sem aumentar-lhe os vencimentos traria alguma compensação de ordem material, aliviando-lhe os encargos de família, e era isto, somente isto, o que interessava da sua carreira de burocrata inadaptado.

Sua ambição, a sua grande ambição, era bem outra: afirmar-se como escritor. Se tinha alguma ilusão, a respeito do Isaías Caminha, o que parece certo, era a do êxito literário. Desejaria a imediata consagração da crítica, da imprensa, do país inteiro. Até os que, por este ou aquele motivo, recebessem o livro com reservas o que era compreensível, em se tratando de uma sátira à imprensa haveriam de, pelo menos, reconhecer-lhe o valor como escritor. Seria, pois, discutido, mas não continuaria esquecido, como até agora, como se fosse um pária da literatura. "A única crítica que me aborrece escreverá alguns anos depois é a do silêncio."2

No entanto, a recepção ao Isaías Caminha, quer da imprensa, quer da crítica, seria mais uma decepção a acrescentar às muitas outras que o escritor vinha sofrendo desde a adolescência. Sem amigos na direção dos jornais de prestígio, poucas foram as notas que apareceram, registrando o aparecimento do livro.

O Correio da Manhã era atingido duramente pela pena do romancista, que o descrevia qual um museu de mediocridades, tendo à frente um diretor violento, mestre de descomposturas, destruindo reputações em nome da moral, mas que não passava, na realidade, de um êmulo de Tartufo, corrupto e devasso.

Nada mais natural, portanto, que o grande jornal se fechasse em copas, olimpicamente, sem tomar conhecimento sequer da existência do Isaías Caminha e do seu criador. O espírito de côterie fez o resto. Os demais jornais também receberam de pé atrás o livro inconveniente e atrevido, onde tantas figuras ilustres e respeitáveis algumas delas, diga-se de passagem, falsamente ilustres e falsamente respeitáveis eram retratadas ao vivo, quase sem nenhum disfarce.

Efetivamente, como pouca gente letrada no Brasil hoje ignora, o romance de Lima Barreto é uma sátira ao Correio da Manhã, escolhido dentre os demais por ser o de maior sucesso, o mais representativo, o mais típico, o mais retratável dos órgãos da imprensa da época.

A chave das Recordações do escrivão Isaías Caminha foi, durante largo tempo, um segredo de polichinelo, de que muito se falava nas rodas de escritores e jornalistas, mas que ninguém se animava a denunciar por escrito. Coisas da província do Brasil... Acabou revelada num artigo de B. Quadros, pseudônimo de Antônio Noronha Santos, na revista Vida Nova, e depois por Gondin da Fonseca, em capítulo da sua biografia de Santos Dumont, no qual descreve a vida carioca do começo de século. Muitos dos personagens ainda vivem. Quanto aos mortos na maioria gente como João do Rio, Edmundo Bittencourt, Leão Veloso, Coelho Neto ou Afrânio Peixoto estes já conquistaram de há muito seus lugares em nossa crônica jornalística e literária.

A sátira era cruel e atingia, em cheio, o quartel-general do mais poderoso jornal da época. Segundo B. Quadros, a chave do romance é a seguinte: Plínio de Andrade ou Plínio Gravatá Lima Barreto; Ricardo Loberant Edmundo Bittencourt; Aires d’Ávila Leão Veloso (Gil Vidal); Leporace Vicente Pirajibe; Lobo, o gramático Cândido Lago; Floc João Itiberê da Cunha (Jic); Veiga Filho Coelho Neto; Raul Rostolopp Mário Cataruzza; Pranzini, o gerente o Fogliani, do Fon-Fon; Florêncio Figueiredo Pimentel; Senador Carvalho Marechal Pires Ferreira; Dr. Franco de Andrade Afrânio Peixoto; Losque Gastão Bousquet; Deodoro Ramalho Floriano de Lemos; Rolim Chico Souto; Agostinho Marques Pedro Ferreira Serrado; Dr. Demóstenes Brandão o juiz Cícero Seabra (irmão de J. J. Seabra); Laje da Silva Pascoal Segreto; O Globo Correio da Manhã; Casa da Valentina a Valéry ou a Richard, duas das mais célebres "pensões" do tempo.3

E, agora, a chave divulgada por Gondin da Fonseca: Ricardo Loberant Edmundo Bittencourt; Ivan Gregorovitch Rostolopp Mário Cataruzza; Pacheco Rabelo (Aires d’Ávila) Leão Veloso (Gil Vidal); Veiga Filho Coelho Neto; Gramático Lobo Cândido Lago; Floc Jic, pseudônimo de João Itiberê da Cunha; Leporace Vicente Pirajibe; Adelermo Caxias Viriato Correia; Oliveira Costa Rego; Losque Gastão Bousquet; Raul Gusmão João do Rio; Laje da Silva Pascoal Segreto; Casa da Valentina pensão da Tina Tatti, célebre rendez-vous do Russell.4

O Recordações do escrivão Isaías Caminha não era, na verdade, a grande obra que tinha em mente escrever um dia. O seu ideal seria mais ambicioso. "Se eu pudesse... confessou através de um dos seus personagens se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a doçura deprimente."5

Ainda era cedo para isso. E como que explicando a gênese do Isaías Caminha, cabe a outro personagem falar pelo escritor:

"A obra que meditava, assim que travei conhecimento mais íntimo com a cozinha literária, percebi logo que me seria difícil publicá-la, sem que, antes, eu adquirisse o bem-querer dos livreiros. Demais, eu precisava anos para realizá-la, tal qual eu a meditava. Pobre, não me seria possível custear a impressão, e mesmo era preciso que eu fosse criando um núcleo de leitores. Resolvi, portanto, publicar alguma coisa que atraísse atenção sobre mim, que me abrisse as portas, como se diz, que me fizesse conhecido, mas queria pôr nessa obra alguma coisa das minhas meditações, das minhas cogitações, atacar em síntese os inimigos das minhas idéias e ridicularizar as suas superstições e idéias feitas."6

Concebera, destarte, um romance diferente dos cânones consagrados. Um romance que tivesse algo de agressivo. Que atraísse enfim "leitores, amigos e inimigos". Não importava a ele os inimigos, alguns dos quais aparecem no Recordações sem nenhum disfarce. Na primeira edição, revela o nome verdadeiro de um dos personagens principais do romance Frederico Lourenço do Couto o Floc das crônicas literárias que outro não era, na vida real, que João Itiberê da Cunha o Jic, do Correio da Manhã. Numa das cenas mais intensas do livro, exatamente a que descreve o suicídio de Floc, quando o chefe da oficina volta à redação, é assim que se dirige ao famoso crítico:

"Seu" Cunha!7

O primeiro crítico a tratar do Isaías Caminha foi Medeiros e Albuquerque. Reconhecendo, embora, as qualidades do romancista "começa pelo fim, aparece como um escritor feito" , lamenta "as alusões pessoais", a descrição de pessoas conhecidas, "pintadas de um modo deprimente", para condenar incisivamente o livro, que classifica como sendo "um mau romance e um mau panfleto". "Mau romance explica porque é da arte inferior dos romans à clef. Mau panfleto porque não tem a coragem do ataque direto, com os nomes claramente postos e vai até a insinuações a pessoas, que mesmo os panfletários mais virulentos deveriam respeitar."8

A crítica de Medeiros e Albuquerque doeu, e Lima Barreto em carta que lhe remete, no mesmo dia em que saiu publicado o folhetim de A Notícia, apresenta a sua defesa: "Estou certo de que as pessoas que não me conhecem só poderão ter a impressão que o senhor teve. Há, entretanto, alguma coisa que a justifique, dentro mesmo dos motivos literários. Se a revolta foi além dos limites, ela tem contudo motivos sérios e poderosos. Na questão dos personagens há (ouso pensar) uma simples questão de momento. Caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem. Concordo que há frases aqui e ali, e mesmo certas referências, que em muito o prejudicam. Ainda questão de momento... Não direi que estou arrependido de tê-las escrito, mas estou disposto a cortá-las em outras edições."9

Uma nova decepção experimentaria Lima Barreto com o inteligente comentário que Alcides Maia dedicou ao Isaías Caminha. E logo quem! A Alcides Maia se atribui, com ou sem razão, a transformação do personagem principal do romance de garção de um café, tal como a princípio o autor teria ideado, em trabalhador de jornal, primeiro contínuo e depois repórter.

Pois bem. Com palavras amáveis, sem dúvida sinceras, traduzindo a sua real estima pelo escritor, Alcides põe a nu o principal defeito do livro a sua nota pessoal, que o reduz quase a um "álbum de fotografias". Não era um romance, mas uma "verdadeira crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más, de surpresas, de ódios". E mais adiante: "O volume, vez por outra, dá a penosa impressão de um desabafo, mais próprio das seções livres que do prelo literário."

Em suma, para Alcides Maia, Lima Barreto não atingira o ideal artístico colimado, justamente porque não tivera força para sopitar o ódio de que se achava possuído contra o meio onde havia formado a sua personalidade.

Em todo o caso, Alcides Maia tratara-o com respeito, e isso significava muito, em meio ao boicote da grande imprensa. Os jornais continuavam mudos. Apesar da campanha de silêncio, o livro se vendia, o que transmite ao escritor desprezado uma sensação de euforia. Em maio de 1910, Lima Barreto escreve ao editor Teixeira, comunicando que, "no Rio, não há mais nenhum exemplar do Isaías", e tal coisa acontecia o detalhe não deixa de ser interessante "há perto de três meses". Sugere, então, uma segunda edição, o que entretanto não encontrou receptividade por parte do livreiro português, que possuía ainda boa quantidade de exemplares no depósito.11

De qualquer modo, o sucesso do livro de estréia não satisfez ao escritor, consciente do seu valor, e que só recebia, até mesmo nos elogios, restrições que o magoavam por sentir-se ora incompreendido, ora frustrado nos seus objetivos.

[...]

Durante muito tempo, pelo resto mesmo da vida, hão de repugnar-lhe as opiniões dos que insistiam em tocar na ferida, apontando o "ponto fraco" do Isaías Caminha, quer para elogiá-lo, quer para denegri-lo. A preocupação que sempre teve em explicar e apresentar justificativas, chega a dar a impressão de uma idéia fixa a lhe martelar insistente e continuamente o cérebro.

O Isaías Caminha marcará a obra de Lima Barreto como um gilvaz a testa de um esgrimista do século XVII. Há de ser sempre o autor de um romance de escândalo. Os senhores da literatura, os que vestem casaca e freqüentam a Livraria Garnier, jamais lhe perdoarão a ousadia da violenta arremetida, as diatribes ferinas que dirigira a certos príncipes do jornalismo e das letras, as caricaturas cruéis que ainda hoje cobrem de ridículo medalhões cheios de empáfia, os mais importantes medalhões da época.

Num movimento de autodefesa, mais do que natural, os mandarins enfurecidos se congregaram para repelir a audácia do mestiço. À porta da Cidade das Letras, como na da Escola Politécnica ou na da Secretaria da Guerra, haveria de encontrar sempre quem o advertisse: é proibida a entrada aos homens de cor, especialmente aos mal comportados. Era o seu pecado original. E por ele pagava.

À condição de mulato, Lima Barreto atribuiria sem dúvida a má vontade para com o seu livro de estréia. No seu entendimento, a restrição ao romance à clef não passava de simples pretexto, encobrindo o verdadeiro objetivo do revide. Tendo o complexo da cor como ponto de partida, o escritor começava a traçar paralelos entre o "seu" caso e o dos "outros". A esfinge, de Afrânio Peixoto, por exemplo, era também um romance à clef, retratando a vida mundana do Rio de Janeiro e de Petrópolis.

Publicado em 1911, dois anos após o aparecimento do Isaías Caminha, a crítica foi unânime em elogiá-lo. Ninguém se lembrou de falar nos romances à clef como um gênero inferior de literatura. E por quê? indagaria consigo mesmo. Simplesmente porque Afrânio Peixoto pertencia ao grupo dos donos da inteligência e da cultura. E ele, Lima Barreto, não passava de um "roto".

Dentro da lógica do desprezado, a comparação é perfeita. O autor vitorioso era de fato a antítese do confrade humilde, que morava nos subúrbios e exercia modestíssima função na Secretaria da Guerra. Afrânio Peixoto, ao contrário, muito moço ainda, participava das grandes instituições do país, das academias e das faculdades, como um pequeno sábio. E, além do mais, era branco.

Lima Barreto leu A esfinge e achou-o, como romance, detestável. Oferecendo o exemplar por ele lido e anotado ao seu mais constante e fiel amigo, Antônio Noronha Santos, deixa escapar, na dedicatória, toda a sua amargura. "Ao Sr. Dr. Antônio Noronha Santos, desejando que tenha na sua estante uma eloqüente prova da importância do senso literário nacional e também do critério que, por este século XX, ainda se tem, entre nós, do romance, ofereço este livro, cujas virtudes opiáticas não são de desprezar. Rio de Janeiro, 25. VIII. 11. (a). Lima Barreto."

O exemplar de A esfinge serviria assim como uma prova documental da injustiça que sofrera. Há mais a registrar. Entre as muitas anotações existentes no volume, feitas pelo próprio Lima Barreto, uma é preciosa para se tirar a conclusão definitiva do travo que ainda amargava a alma do escritor desprezado: "É à clef, e eles elogiaram."12

Anos mais tarde, Lima Barreto volta ao assunto, para fazer a defesa dos romances à clef. Para ele, o gênero não implicaria nenhuma inferioridade literária, mas uma forma de literatura militante.13 Praticando-o, o autor devia "retratar o personagem, dar-lhe a sua fisionomia própria, fotografá-lo, por assim dizer".

Assim comentava em 1921 O homem sem máscara, romance aliás medíocre, da autoria de Vinício da Veiga. Um ano antes de morrer, Lima Barreto parecia estar respondendo ao artigo em que Medeiros e Albuquerque enumerou os defeitos do Recordações do escrivão Isaías Caminha.

"A força dos romances dessa natureza dirá, nessa oportunidade, a propósito dos romances à clef reside em que as relações do personagem com o modelo não devem ser encontradas no nome, mas na descrição do tipo, feita pelo romancista de um só golpe, numa frase. Dessa forma, para os que conhecem o modelo, a charge é artística, fica clara, é expressiva e fornece-lhes um maldoso regalo; para os que não o conhecem, recebem o personagem como uma ficção qualquer de um romance qualquer e a obra, em si, nada sofre. Com o recurso, porém, de simples pseudônimos transparentes, o trabalho perde o seu quid artístico, passa a ser um panfleto comum e os personagens, sem vida autônoma e sem alma, simples títeres ou fantoches."

Depois dessa dissertação, Lima Barreto aconselhava ao jovem romancista a tomar o caminho da literatura militante, "criticando semelhante ‘pessoal’ [a gente da sociedade], não em relação ao plano anormal da sexualidade humana, mas em relação aos interesses sociais que, na vida comum, ele lesa mais do que quando se entrega às suas mórbidas abjeções sociais".14

Doze anos depois do aparecimento do Isaías Caminha, ainda doía a ferida mal cicatrizada.

***

1. Carta a Antônio Noronha Santos, Rio de Janeiro, 18-5-1909. "Duas cartas inéditas de Lima Barreto". O Globo, Rio de Janeiro, 4-9-1933. V. Correspondência, I, p. 76.
2. Histórias e sonhos, p. 29.
3. "Primeiro contacto com Lima Barreto". Artigo de B. Quadros, na revista Vida Nova, Rio de Janeiro, 25-1-1936. N. 279, pp. 23-24, reproduzido como prefácio ao volume Correspondência, II.
4. Santos Dumont, por Gondin da Fonseca. Rio de Janeiro, Vecchi Editor, 1940, pp. 133-134. A inclusão do nome de Costa Rego não nos parece corresponder à verdade, já que a sua entrada no Correio da Manhã, como simples revisor, data de 1906. A estes nomes, acrescenta Modesto de Abreu o de Cândido Jucá, representado no personagem Plínio Gravatá.
5. Gonzaga de Sá, p. 134.
6. O cemitério dos vivos, pp. 168-169.
7. Isaías Caminha, 1a edição, p. 285. A observação pertence a Modesto de Abreu. "A chave do Isaías", artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16-2-1936.
8. "Crônica literária", por J. dos Santos (pseudônimo de Medeiros e Albuquerque). A Notícia, Rio de Janeiro, 15-12-1909.
9. Carta a Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro, 15-12-1909. Col. Lima Barreto. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. V. Correspondência, I, p. 198.
10. "Crônica literária", assinada com a inicial A. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16-12-1909.
11. Carta a A. M. Teixeira, de 28-5-1910, e resposta deste, a 18-6-1910. V. Correspondência, I, pp. 177-179.
12. "Lima Barreto e Afrânio Peixoto (Em torno de dois romances à clef)" artigo de Antônio Noronha Santos. Pan Estadual, Rio de Janeiro, novembro e dezembro de 1942, pp. 5-7.
13. "Como sempre falei em literatura militante"... V. "Literatura militante", artigo de Lima Barreto. Impressões de literatura, p. 72.
14. "Um livro desabusado", artigo de Lima Barreto. A.B.C. Rio de Janeiro, 24-12-
1921. V. Impressões de leitura, pp. 202-203.

(A vida de Lima Barreto, capítulo VI, 1952.)


* Jornalista, biógrafo, historiador e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.
A variável Lula

* Por Emir Sader


Lula foi situado no centro da vida política brasileira. Todos os holofotes se concentram sobre ele: ou será abatido no voo pela direita, tirando-o, no tapetão, da vida política, ou exercerá seu papel de eixo da recomposição da esquerda brasileira e conseguirá dar continuidade ao processo iniciado em 2002, com todas as adequações necessárias.

Em um marco de crise de credibilidade das instituições, das forças políticas e sociais, das lideranças, a exceção fica com Lula. Não fosse assim, ele não seria alvo dos ataques concentrados da direita. Se acreditasse nas suas pesquisas, bastaria a direita esperar até 2018 e derrotá-lo com qualquer um dos seus candidatos.

O destino da direita depende de conseguir inviabilizar juridicamente a candidatura do Lula e ter assim o caminho aberto para reconquistar a presidência da república. Caso contrário, teria que se consolar com um novo mandato do Lula, limitando-o pela revogação da reeleição.

Do lado do campo popular, Lula também é a referência, é o grande patrimônio, com ele pode contar. O maior líder popular da história do Brasil, Lula mantém vínculos profundos com a massa da população, seus governos ficaram marcados na consciência e na memória das pessoas, Lula representa a auto estima dos brasileiros. Por tudo isso, apesar da brutal campanha contra sua imagem, ela permanece arraigada no seio do povo.

Mas ele não se limita a estar na memória do povo, ele representa também sua esperança. Ninguém tem o carisma e a mística que a liderança de Lula possui.

Desde a crise de 2005, quando a imagem do PT passou a ser afetada negativamente, a imagem do Lula foi se descolando do partido, conforme o governo foi ganhando prestigio, com o sucesso das políticas sociais. Mesmo quando a imagem do governo de Dilma e a do PT sofrem com a mais dura das campanhas da oposição, a imagem de Lula resiste e as próprias pesquisas que dão resultados muito ruins para o PT e Dilma, têm que revelar que Lula teria pelo menos 33% de apoio.

Mas o Lula de agora precisa propor ao país novas utopias, novos objetivos, continuidade e aprofundamento do que foi feito a partir do seu governo, precisa diálogo com novos setores sociais, especialmente os jovens, tanto os da periferia quanto os da classe média, precisa surgir como quem reivindica não só a visibilização desses setores, como os espaços das mulheres, rejeitadas nas suas reivindicações. Em suma, Lula tem que representar, ao mesmo tempo, a retomada do que foram seus governos, da forma de fazer política que unifique as forças que apoiem os programas propostos nos seus governos, como também renovador. Nas reivindicações, na linguagem, na interpelação e integração de setores até aqui marginalizados.

É Lula que pode ser o eixo da recomposição das forças de esquerda, das forças democráticas e populares, recomposição que tem que ser feita com novas plataformas, novos programas, que deem vida a um amplo movimento social, político, econômico, cultural, que consolide os avanços, altere profundamente as relações de poder que resistem a esses avanços e aponte para o Brasil a que Lula abriu o caminho com seus governos e sua liderança.

Qualquer especulação política sobre o futuro do Brasil que não leve em consideração a variável Lula, está equivocada, está fora da realidade, não considera o fator determinante do futuro político do país. Candidatos tucanos já conhecidos, nomes sem nenhuma viabilidade popular do PMDB ou outros nomes que aventuras políticas apontam, se chocam com essa realidade incontornável. Uma vez mais, quem não decifra o enigma Lula é devorado por ele, como tem acontecido reiteradamente.

* Sociólogo e cientista político



quinta-feira, 30 de julho de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos, três meses e trinta e um dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Talento dos Pampas.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Oásis no coração”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto, “Grande é pensar pequeno”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto, “Uniforme”.

Coluna Porta Aberta – Eduardo Pragmácio Filho, poema, “Possibilidades”.

Coluna Porta Aberta – Osvaldo Pastorelli, conto, “A dama do metrô”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer– Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.