Um farmacêutico singular
[
* Por
Marco Albertim
Os militares não
prenderam Aníbal Fregolente logo após o golpe. Inda que sua fama de comunista
datasse de quando Prestes fora senador, e toda a cidade chamasse sua farmácia
de Moscouzinho, por dois anos ele pacholou pelas ruas de Goiana, sem que se
desse conta de que o pequeno comércio de remédios fosse objeto da espreita de
alcaguetes.
Com uma perna dura, em
consequência de um reumatismo precoce, não conseguia dobrá-la; o modo de
caminhar incorporou-se a seu perfil de um jeito que o vulgo não admitia alguém
mais com a mesma deficiência. Não usava camisas de manga comprida, porque o uso
do linho cobrindo braços e punhos era costume dos senhores de enge nho. O linho
de Aníbal Fregolente – calça e camisa na cor bege, em combinação com sua pele
macilenta – conferia autoridade à pregação que fazia do socialismo. Pregação
sonora, inda que com pouco ruído, mas sonora porque cada sílaba de seu
vocabulário tinha o eco próprio da voz cava. Quando entrou no Partido Comunista,
os camaradas da base à que pertencera deram-lhe boas-vindas, certos de que o
poder de persuasão do farmacêutico traria mais gente para o partido. Depois de
ouvir as principais obrigações conforme os estatutos, bem como os direitos do
militante, fez questão de discursar; não repetiu enunciados de teorias,
referiu-se ao socialismo como se o tivesse resgatado de uma página de ficção
prenhe de romantismo. O entusiasmo picou-o de tal modo que o fez sentir-se
caminhando na antessala do socialismo; assim, inquiriu dos novos camaradas:
- O capitalismo ainda
tem cinco anos de vida?
- Isso depende dos
operários da fábrica de tecidos, de sua adesão ao programa do partido –
respondera Olegário, pescador negro, morando na margem do rio Goiana, com
liderança entre todos os barqueiros.
- Eles vêm comprar
remédio na minha farmácia, depois que a farmácia da fábrica fechou. Agora
compram a mim, e a fábrica me paga.
- Convença-os de que o
programa do partido é o mais justo.
Os operários não se
consultavam com médico. Aníbal Fregolente, farmacêutico experiente,
perorava-lhes sobre a terapia adequada para evitar doenças. Aos que ouviam como
a um oráculo, acrescia uma folha ou outra com explicações do partido sobre os
benefícios do socialismo. Uma base foi criada com tecelões. O presidente do
sindicato, educado no convívio servil com o proprietário, contrariou-se.
A farmácia, dos dois
lados do balcão, tinha cadeiras na frente, entre os balcões e as duas portas de
acesso. Às cinco horas da tarde, todo o comércio da Rua da Feira minguava.
Junto à farmácia, a alfaiataria de Eusébio Rocha fechava às cinco da tarde.
Antes de descer a rua, – a Rua da Feira era ladeirada – Eusébio entrava na
farmácia para ouvir e discordar das ideias do farmacêutico, na roda de conversa
em torno das cadeiras. Evandro Saúna, barbeiro na mesma rua, fora recrutado
para o partido pelo farmacêutico. À noite ninguém o procurava para cortar os
cabelos; ele aproveitava para ouvir e dar seu palpite sobre o socialismo
iminente de Aníbal Fregolente. Se um operário ou outro tinha assento numa das
cadeiras, a crença no socialismo, de tão rubra, incendiava os olhos da plêiade
de comunistas; para o-desgosto do alfaiate, solitário na defesa do capitalismo.
- Minha alfaiataria não
será administrada pelos meus ajudantes!
- Sua alfaiataria é tão
pequena que não prejudicará a economia socialista – objetava o farmacêutico. –
Será mais fácil a minha farmácia fechar, porque o Estado será o maior produtor
de remédios para socializar a saúde.
- O que vai fazer você?
– insistiu o alfaiate.
- O Estado socialista
não vai me deixar na mão...
As conversas na
Moscouzinho tornaram-se tão frequentes que, com a luz de cada poste acesa, já
noite, as convicções também acendiam. Sem vinho nem qualquer outra bebida, o
festim do ideário comunista cria-se inamovível; dir-se-ia o estopim da
revolução socialista.
O golpe militar pôs fim
às tertúlias. As bases do Partido Comunista, atropeladas pela polícia,
desfizeram-se. Olegário recomendara-lhes que não se reunissem, não enquanto o
partido não deliberasse sobre como reagir com os militares no poder. Olegário e
Evandro Saúna foram presos.
- Eles não acreditam
que você seja comunista porque é dono de uma propriedade privada – disse
Olegário, já solto, a Aníbal Fregolente.
- E vocês resistirão à
tortura? – quis saber o farmacêutico.
- Resistimos.
Dois anos depois,
Aníbal Fregolente foi intimado a depor. O chefe de polícia, sem saber o que lhe
perguntar, certo de que a faina comunista tivera fim, preveniu-o:
- Defenda-se!
- Ataque...!
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu
contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso
nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do
Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as
coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três
livros de contos e um romance.
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