A distância, Nossa Senhora e as guerras
* Por Marcos Alves
O envolvimento das pessoas
com o sofrimento alheio muda conforme a distância e, claro, a conveniência.
Notadamente, mais essa do que aquela. Nem mesmo a revolução digital foi capaz
de mudar isso. Talvez tenha até acentuado. A conveniência aqui pode ser
compreendida como o conforto de não ter nada ou muito pouco a perder, seja em
termos materiais ou afetivos. No Brasil, o interesse pelas bombas que caem e
desesperam as famílias de Beirute, assim como pelos mísseis do Hezbollah que
explodem ao norte de Israel perde para
qualquer camarada razoavelmente vestido deitado na calçada ali na esquina.
Alguém sempre acaba parando para dar uma mão ou chamar a polícia.
Dia desses, chegou a
Varginha, Minas, um homem de 35 anos numa cadeira de rodas. Ele pediu para ser
chamado de "Gibão caminhoneiro". Ficara paraplégico depois de um
acidente na estrada. Chegou empurrando a cadeira, contou que estava a cumprir
uma promessa. Foi na cadeira, disse ele, que fizera o trajeto de mais de 3 mil
quilômetros entre Manaus, no Amazonas e Aparecida, no interior paulista. Se
dizia abençoado por ainda estar vivo e se locomover. Estava grato por ter
braços e a cabeça em ordem. À volta, olhares de admiração diante do feito, de fato,
digno de reconhecimento.
"O sofrimento humano
visto de longe perde sua dramaticidade", escreveu Eduardo Giannetti.
Quando a guerra esquenta lá fora, lemos os jornais com apreensão, mas atrevo-me
a afirmar que, sem contar os imigrantes e pessoas do círculo familiar de
israelenses e libaneses (ou palestinos) que estão no Brasil, pouca gente aqui
realmente sofre com a guerra de lá. A nossa guerra é outra: bandido contra
polícia, polícia virando bandido, bandido político contra tudo e a favor de si
próprio. E a gente só levando bala nas costas.
Escrevo de Minas e posso
afirmar que, se o PCC ataca em São Paulo, ficamos bem mais preocupados. Eis que entra em cena o fator
conveniência, ajudado evidentemente pela distância. São Paulo é aqui do lado,
mas longe o bastante para evitar que as balas do PCC sejam uma ameaça real.
Mesmo em Belo Horizonte, onde a violência também assusta, a gente no fundo, no
fundo ainda se permite uma sensaçãozinha de alívio. E quem há de negar que a
recíproca é verdadeira?
É o mesmo raciocínio que
leva certos belo-horizontinos, paulistanos e cariocas a trocar a loucura dos
grandes centros pela pseudotranqüilidade do interior. Pode dar certo e a vida
ficar mais leve, menos urgente. Mas também pode dar errado. Muita gente sai de
BH, Rio e SP para ser assaltado no interior.
Uma praga antiga,
realimentada em nossos tempos pelo medo. E
pelo individualismo. O meu, primeiro, licença. Quando o meu pote estiver
cheinho, o do parceiro... Olha, ele veio de cadeira de rodas! É um devoto de Nossa
Senhora Aparecida! Mas, o que isso significa na vida de cada um de nós? Tudo
bem, passou na TV e isso dá um alcance maior, indiscutivelmente. Mas sabemos
que amanhã tem jornal de novo. A criminalidade no Brasil, a guerra no Oriente
Médio. Tudo e nada de novo.
Como disse
Chekov, "Pensais honestamente, e por isso odiais o mundo todo. Detestais
os crentes porque a fé é um indicador de estupidez e de ignorância; e detestais
os descrentes porque não têm fé nem ideal. Odiais os velhos pelas suas
mentalidades ultrapassadas, e os novos pelo seu liberalismo". Vivemos em
tempos de conveniência. Faltam exemplos, valores.
O brasileiro é solidário mas
preguiçoso, politicamente. Pudera essa proximidade com o outro (na cadeira de
rodas também, só que tem mais gente precisando) fosse encarada como uma real
oportunidade de compreender que a nossa guerra é do tamanho da desigualdade
social no Brasil. A certos políticos falta vergonha na cara...bem, não sei onde
ouvi ou li que as pessoas não podem dar aquilo que não têm. Eles não têm
vergonha. Ao menos alguns foram parar na cadeia. Saíram depois, mas
experimentaram a tortura psicológica do xilindró.
A nós, resta viver aqui. Não, não tenho nenhuma boa
fórmula, não sou expert em segurança pública, não sou político e tampouco me
considero visionário, longe disso. Só sei que enquanto os poderes e as pessoas
hesitam a violência só faz aumentar. Ah, e essa campanha de voto nulo é, como
disse o Gabeira, jogar a favor dos bandidões e pelegos que assim ficam mais
perto do congresso na próxima legislatura. Mas ainda tenho fé. Que Nossa
Senhora nos ajude. E ao romeiro "Gibão" em suas andanças.
* Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos.
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