Diário de viagem ao Maranhão
(I)
* Por Risomar Fasanaro
Há pelo menos dez anos tentava
conhecer um pouco do Maranhão. Mas não conseguia e ia sempre parar em outro
lugar: Recife, Natal, Belém, Manaus, Ilha do Marajó. E ficava sempre aquele
sentimento de não ter ido aonde queria realmente ir. Mas agora consegui. Fui
conhecer um pouco bem menos do que queria, de São Luís, dos Lençóis Maranhenses
e de Alcântara.
Fiz questão de pedir à agência
para hospedar-me em uma construção antiga. Informaram- me que poderia me
hospedar na Pousada do Francês. Um casarão do século XVIII, tombado pelo
patrimônio histórico. Havia hotéis mais confortáveis, se eu quisesse, e
insisti: quero um lugar onde encontre um pouco do pó de séculos passados, algum
limo de outras eras, sombras de passos de pessoas que nunca vi, nunca ouvi. E
foi para lá que fui.
Antes deve ter morado ali algum
francês, imagino, o que deu nome ao local, depois, disseram-me na pousada, se
transformara em um cortiço. Padres compraram a propriedade, restauraram-na, e
agora tornou-se um dos hotéis mais simpáticos da cidade.
Era madrugada quando chegamos,
mas isso não impediu de me encantar com a beleza do casarão. Logo na entrada vejo
um gramofone em cima do balcão e já viajo pelo tempo, imaginando se ali alguém
colocou um disco de Chiquinha Gonzaga. Dizem meus primos, ser nossa ancestral,
o que justificaria, para os meus, minha forma rebelde de ser.
Acredito piamente nessa história,
primeiro porque aumenta minha auto-estima, segundo porque em uma entrevista pela
TV ouvi Rosa Maria Murtinho dizer que Djenane Machado é descendente dela, e
como há muito tempo escuto de meus primos que a atriz é nossa prima em terceiro
ou quarto grau, a “lenda” confere.
Relógios antiqüíssimos marcam o
tempo. Tempo que naquela terra corre com suavidade. Uma lentidão que lembra o
deslizar do tempo das sinhazinhas com suas longas saias rodadas, a caminhar com
cuidado pelos irregulares pisos de pedras. Mas nesse primeiro dia apenas vou
dormir. E tenho um sonho altamente significativo. Coisa para ser analisada por
terapeuta junguiano ou por algum mestre esotérico. Outra vida? Outra
reencarnação? Não sei. Como disse Guimarães Rosa em “Grande Sertão: veredas“ eu
quase de nada sei, mas de muita coisa desconfio”.
Levanto cedo, tomo café com
frutas, sucos, bolinhos de tapioca fritos e bolo de mandioca quase igual ao que
minha mãe fazia, porque vocês sabem, nem a magia de uma viagem sonhada há tanto
tempo, supera as receitas da mãe da gente.
Caminho pelas ruas, junto com
Edilena, minha amiga de longa data. O primeiro sentimento que me toma é o de
decepção. Ao redor da pousada, casarões coloniais estão desmoronando, me
emociono vendo aquilo, meus olhos se enchem de lágrimas, e pergunto aos
moradores quem é o secretário de Cultura e se é fácil falar com ele. Dizem que
sim, e logo depois, na volta, consigo a adesão de outros hóspedes para formar
uma comissão e ir falar com ele. Mas temos calma, não vamos por atalhos, que
nem sempre são os melhores caminhos. Ainda vimos muito poço da cidade, não podemos
nos precipitar.
Fotografo os azulejos dos mais
diferentes padrões. Quando surgem alguns com padrão diferente, Edilena me chama
a atenção, para fotografá-los. Eles sempre me encantaram. Durante anos comprei
revistas que traziam fotos de São Luís e de Alcântara por causa deles. Ao
passar as fotos para o computador, meu filho se espanta: “mas, mã, (é assim que
ele me chama) você tirou todas essa fotos de azulejos?” “É... e receio ter me
escapado algum padrão diferente”. Não por acaso tento me tornar uma ceramista.
As portas, janelas, telhados são
de uma beleza sem fim. Fico sabendo que além de eira e beira; ali existem
tribeiras. São telhas colocadas umas sobre as outras e que denotam as posses
materiais dos proprietários dos casarões e sobrados.
As casas onde a beira do telhado
é de apenas uma telha indica que o proprietário tem pequenas posses, se há duas
camadas de telhas são chamadas de eira e beira; e indica que são pessoas de
mais posses; já os que têm três camadas de telhas, chamadas tribeiras, são os
grandes proprietários, a classe dominante.
As estreitas ruas de pedras me
levam a pensar quanto suor e sangue de escravos escondem em suas reentrâncias.
É domingo, a cidade está deserta e as raras pessoas que encontramos nos
previnem que aquela região é perigosa, e que naquela região acontecem muitos
assaltos, e continuamos nosso passeio, tentando esconder a máquina fotográfica.
Já é hora do almoço e nossa curiosidade
nos leva a pedir arroz de cuxá com peixe frito e pirão, um arroz feito com uma
verdura chamada vinagreira, camarão seco, gergelim torrado e muitos frutos do
mar. E sem exagero, jamais saboreei arroz tão delicioso.
À tarde fomos circular pela
cidade, guiados por Rai, a guia. Uma moça loira, muito simpática, e apaixonada
pela história de sua terra. Chovia muito, por isso alguns lugares só vimos do
ônibus, mas logo depois a chuva cessou e pudemos descer. Ela nos levou ao Beco
Quebra Bunda, assim batizado porque ali as pessoas caem muito, depois mostrou o
Beco da Bosta, local por onde passavam os escravos carregando grandes baldes
com as fezes dos senhores, para jogar no mar.
Fizemos uma parada para tomar
sucos, refrigerantes e conhecemos o guaraná “Jesus”, refrigerante cor-de-rosa, gostoso
demais, completamente diferente de todos os refrigerantes que conhecemos no
sul, e que alguém no bar nos informou, há um contrato com a Coca-Cola que
impede a sua venda aqui e em outros estados. Coisas que nunca vou entender.
A guia nos conta que no ano
passado seu filho teve dengue hemorrágica e foi graças àquele guaraná que ele
conseguiu aumentar o número de plaquetas sanguíneas.
Continuamos nossa caminhada e nos
detivemos em frente ao Teatro Arthur Azevedo. Construído em 1815 por dois
comerciantes portugueses, com o nome de Teatro União, é o segundo teatro mais
antigo do Brasil. Foi inaugurado em 1817; em 1852 passou a se chamar Teatro São
Luís; e por causa dos padres Carmelitas as obras foram paralisadas. Os
religiosos não aceitavam a construção de um edifício profano no Largo do Carmo,
próximo a um sagrado (Convento do Carmo). Por isso, para não desgostar os
padres, os engenheiros inverteram a frente do Teatro para a Rua do Sol. Em 1922
foi rebatizado com o nome do teatrólogo ludovicense, Arthur Azevedo. Patrono
justo, já que ele consolidou o teatro de costumes no Brasil e é considerado
pelos críticos o principal autor do teatro de revista.
A sua capacidade é de 750
espectadores e possui estrutura que comporta tecnologia de aparelhagem de som,
iluminação e vídeo dos mais avançados.
Tivemos, Edilena e eu, a
felicidade de estar em São
Luís , capital da Cultura, título mais do que justo dado a uma
cidade que transpira cultura e arte por
todos os cantos, exatamente na semana em que se comemorava a “Semana do
Folclore”, tema que tratarei na próxima semana. Alguém poderia estar mais feliz
do que nós duas?
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
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