Em meio à abstração que a ficção exige
* Por
Thiago Corrêa
Aos 16 anos, Marco
Albertim já demonstrava ser um sujeito de visão. Ainda que na época carregasse
a inexperiência comum à juventude, ele logo percebeu o privilégio de possuir a
capacidade de enxergar. Uma lição que o adolescente entendeu ao ser contratado
por um advogado de idade já avançada para lhe emprestar a habilidade do olhar e
sua disposição em ler. Diariamente, das 14h às 16h, o garoto saía de sua casa
no bairro de Cajueiro e se dirigia à rua Miranda Curió, na Encruzilhada, para
ganhar alguns trocados enquanto vivia sua própria aventura borgeana pelos
labirintos da leitura.
Apesar de ser ele o
narrador, Marco Albertim começou a navegar pelo mar de palavras guiado por seu
primeiro patrão. Com os olhos assumindo a condição de duas tochas flamejantes,
toda tarde o adolescente assumia o front contra a cegueira do advogado,
iluminando a escuridão em busca de palavras, desbravando ideias e sentimentos
bordados na forma de letras sobre o papel. “No início, era ele quem escolhia os
livros, gostava de romances, contos e alguns livros de história. Com o tempo,
ele foi me pedindo para ir ao comércio comprar livros e pude sugerir algumas
coisas”, recorda.
Envolto pelas sombras
da cegueira, os olhos de Marco Albertim terminaram por se apegar ao
deslumbramento das possibilidades da visão. Tal como o confronto entre a
palidez do papel e a tinta preta que fixa as palavras, o caminho do jovem
Albertim foi ganhando sentido à medida que as histórias se insinuavam na
claridade ofuscante das entrelinhas da sua vida. “Ali começou meu interesse
pela literatura, que permanece até hoje”, revela. Passadas pouco mais de quatro
décadas, o senhor de 59 anos continua nutrindo o olhar rígido de caçador à
procura de contrastes para montar sua obra e preencher o vazio da sua alma.
Algo que ocorre seja
nos momentos de lazer com uma câmera fotográfica Nikon em punho, no simples ato
de observar o mundo à sua volta ou na rotina do seu trabalho. Atuando como
jornalista desde 1971, quando deixou de reproduzir histórias já escritas para
trabalhar na Rádio Clube, Marco Albertim primeiro encontrou na atividade de
repórter a possibilidade de dar vazão não apenas à necessidade de contar cenas
que colhia no ambiente real do cotidiano, mas também de adquirir bagagem e
experimentar as trilhas improváveis da vida. “Todo escritor se nutre da leitura
e da experiência pessoal. Um autor que não sai de casa não pode ser escritor,
da mesma forma que quem não lê também não pode”, defende.
Da mesma maneira que
muitos da sua geração, essa vivência veio nos tempos da ditadura, através do exercício
da prática política, na militância do movimento estudantil como membro da União
Brasileira dos Estudantes Secundaristas. “Fui perseguido, passei quatro anos na
clandestinidade, trabalhando com outro nome para não ser pego pela polícia”,
lembra. A escuridão agora vinha da falta de liberdade de expressão e, apesar
das dificuldades da época, o olhar de Marco Albertim continuava a flamejar para
iluminar as trevas impostas pelo governo militar como correspondente do jornal
Movimento.
Longe do Recife para
despistar a repressão, o jornalista amenizava a solidão com a leitura,
peregrinando por bibliotecas da periferia de Maceió (AL), Fortaleza (CE) e do Rio de Janeiro (RJ)
durante o período em que passou foragido. Foi por conta do seu envolvimento
político com as ideias de esquerda, que ele terminou por se interessar pela
obra de autores russos como Fiódor Dostoiévski, Maksim Gorki, Anton Tchekov e
Nikolai Gogol. “Todos esses escritores, embora não fossem filiados a partidos
de esquerda, têm uma espécie de compromisso em capturar o homem como objeto da
História, eles tinham o sentimento do mundo”, justifica.
Um aprendizado que ele
ganhou nos tempos de militância política e faz questão de lembrar não só nas
estratégias de guerrilha usadas para divulgar sua obra, como também para
alimentar as histórias que escreve. “Muitos dos meus contos remetem àquela
época da ditadura. Quando escrevo, é como se eu estivesse resgatando essa
experiência. Aquilo é uma herança, não podia deixar passar em branco uma fase
tão importante, eu precisava sistematizar isso de algum modo”, afirma. A luta
política também é um dos temas do seu primeiro romance, Conspiração no
Guadalupe, que vem sendo publicado no estilo de folhetim no Literário
(http://pbondaczuk.blogspot.com).
Nele, o autor parte de
situações corriqueiras como uma simples procissão religiosa para desencadear
discussões sobre a liberdade de expressão, os direitos individuais, os valores
da sociedade e as possibilidades da arte. “Escrever ficção me angustia, porque
quero reproduzir o clima do episódio, a subjetividade do personagem e não o
fato em si, que seria mais fácil”, completa. Nesse breve episódio do nono
capítulo do romance, Albertim expõe o jogo de influências que envolvem a
opinião pública, a classe política e a igreja católica, além dos interesses
ideológicos e polemistas que alimentam a imprensa local. Em meio a todas essas
variantes, o posicionamento crítico do autor fica evidente ao trabalhar a
tensão social que se instala a partir da perspectiva mais liberal, através do
núcleo de personagens que guardam ligações com o Partido e, assim como ele,
acreditam na força de pequenas ações para engasgar o funcionamento de regimes
políticos autoritários.
Mas até então a veia de
contador de histórias apenas se manifestava na prática jornalística. Com a
abertura política e o fim do semanário Movimento, Marco Albertim foi trabalhar
como copydesk do Diario de Pernambuco, repórter do Jornal do Commercio, depois
integrou o projeto Tiridá Comunicações, junto com o amigo jornalista Urariano
Mota e hoje trabalha como assessor do vereador Luciano Siqueira. “Nem todo
jornalista é um bom escritor. Isso só vem com o tempo, você precisa se
desprender do figurino, da bitola jornalística”, analisa.
No seu caso, porém, foi
preciso um empurrãozinho de Urariano para fazê-lo provar as narrativas
ficcionais através do convite para colaborar com o site espanhol La Insignia
(www.lainsignia.org). “Quando se chega ao nível de escrever ficção, significa
que o repórter atingiu um grau de abstração, maturou sua capacidade de capturar
o real e tem mais condições de sistematizá-lo no papel”, conclui. Da página
espanhola, ele passou para o site Comunique-se (www.comunique-se.com.br) e, na
sequência, para o Literário), onde publica toda quarta-feira, contos e resenhas
de livros escritos por autores locais como Samarone Lima, Raimundo Carrero,
Pedro Américo de Farias e Inah Lins. “Não faço crítica no sentido de apagar o
esforço da pessoa, mas no sentido de ser franco, sincero”, analisa.
Embora afirme que o retorno
da web seja interessante, recebendo comentários de leitores da Espanha, Cuba e
do México, Marco Albertim ainda sonha com a oportunidade de ver seus textos
numa brochura. “Quem não quer ser publicado em papel? A publicação em papel
talvez seja até um condicionamento, nossa educação foi feita através de livros,
conhecemos os autores consagrados no papel”, observa. Um sentimento de
clandestinidade que o fez, logo no início da entrevista, ressaltar seu
currículo nos espaços tradicionais do circuito das letras.
Em 2006, por exemplo, a
trajetória literária do jornalista foi reconhecida pelo Prêmio de Contos Osman
Lins e, em 2008, seu livro ainda inédito Um presente para o papa e outros
contos recebeu menção honrosa do Conselho Municipal de Cultura do Recife. Além
disso, Marco Albertim também teve textos publicados na Panorâmica do Conto em
Pernambuco e a primeira edição da coletânea Contos de Natal, editada pela
Gerência Operacional de Literatura e Editoração da Prefeitura do Recife.
Distinções que não lhe garantiram o acesso de suas obras às prateleiras. Na
gaveta, encontram-se na escuridão outro volume de contos ainda sem título e o
citado romance Conspiração no Guadalupe.
“As editoras não me
mandam respostas, estou esperando até hoje. Eu vivo catando concursos”,
lamenta. Apesar do desânimo causado pelo silêncio do mercado editorial e da
sensação de clandestinidade no círculo intelectual pernambucano, Marco Albertim
mantém a perseverança para escrever suas histórias. Diariamente, após uma
caminhada pela manhã na praia de Pau Amarelo, ele senta em frente ao computador
e escolhe uma música de acordo com a narrativa que será desfiada. “Como moro em
Pau Amarelo, tenho uma tranquilidade muito boa. É somente o computador, a
música e eu. Isso me ajuda a escrever, quando a narrativa se passa na Zona da
Mata, coloco um coco de roda”, revela, já planejando a trilha sonora da sua
próxima história.
* Jornalista
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