sexta-feira, 6 de junho de 2014

Vovô era pai da minha mãe

* Por Mara Narciso

Quando meu avô Petronilho Narciso me conheceu, ele tinha 47 anos, pois nasceu em 31 de maio de 1908 e eu em 1955. Trabalhava com os Irmãos Paculdino, exercendo diversas funções naquela indústria de beneficiamento de algodão e mamonas. Começou na empresa ao pé da balança, controlando a entrada dos produtos. Era homem habilidoso, com letra incrivelmente bonita, considerando-se que era canhoto e fora obrigado a escrever e a se alimentar com a mão direita. Nunca nos confirmou essa história, que deduzimos pelos usos que fazia da mão esquerda.

Tinha pele alva, olhos claros, e estatura média. Muito asseado, andava feito um lorde, com um relógio de ouro de bolso amarrado numa corrente, e um anel de ouro e diamante no dedo mínimo. O seu banho era um ritual no qual o banheiro era lavado imediatamente antes da sua entrada, após o trabalho, e nele havia um sabonete e toalha recém-colocados. Morava numa casa alta e enorme para a menininha pequena que eu era. Tinha jardim com rosas e hibiscos, alpendre, duas salas, uma cozinha grande, seis quartos e um corredor interminável. Ao fundo havia o banheiro que era uma sala de banho, com banheira, e lá no fundo um quintal cheio de árvores frutíferas como umbuzeiro (espetacular com seus frutos doces), goiabeira, pinheira, abacateiro, mangueira, parreira e ameixeira. No jardim havia dois coqueiros e noutra época duas pitombeiras e um pé de araçá. Num buraco do muro brotava uma colméia de pequenas abelhas.

Trabalhou na contabilidade e chegou à gerente da mesma empresa. Quando atuava no escritório do Edifício Ciosa, no centro, ia nos visitar todas as manhãs, no intervalo do café. Morávamos num apartamento ao lado do então Banco do Brasil e meu avô trazia nas mãos recém lavadas uma bolinha de papel higiênico cor-de-rosa e balas de mel. Falava um pouco com minha mãe, pedíamos-lhe a benção e ele ia embora.

Quando jovem, trabalhou como balconista, e me contava a dura vida de antes das leis trabalhistas, ocasião em que ficava de pé de sete da manhã até tarde da noite. Apaixonou-se e queria se casar com Maria do Rosário de Souza Lima, mas foi impedido pelo meu bisavô Jason Gero de Souza Lima, fazendeiro de boa situação, devido à má condição financeira dele. Quando Jason Gero morreu por complicações relacionadas à asma brônquica, o casamento se realizou, gerando onze filhos, dos quais dois morreram pequenos (Neusa e Petronilhinho). Os demais são Maria Josefina (Nininha), Maria Milena (minha mãe), Francisco (Chiquito), Pedro, Marlene, Marly, Rosa Clarice, Maria Inez (Dida) e Petronilho Júnior (Tonilo).

A primeira leva de telefones de Montes Claros, trouxe um para a casa do meu avô. Na geladeira da casa, uma das primeiras da cidade, tinha tudo que menino gosta e não faltavam salame nem mel de rapadura. Quando viúvo e idoso, sua cozinha continuou limpa, e se alguém usasse um copo, tinha de lavá-lo. Nada fora do lugar, quintal e jardim impecáveis, vovô fazia questão de ele mesmo molhar as plantas, levando o regador com a mão esquerda.  O seu quintal nunca deixou de ser um paraíso. Como era bom estar naquele mundo mágico de cores, sons e sabores. Os doces sabores da fruta madura. Petronilho não brincava com a gente, mas nos deixava invadir aquele mundo, subir nas árvores e viajar nas asas da imaginação, exceto quando os umbus estavam verdes.

Honesto, austero e sistemático, quando jovem era nervoso e chegou a castigar os filhos. Entendo o comportamento vigente na época, porém, mal consigo imaginar essa faceta do meu avô, pois só me lembro dele suave e amável, pegando os distraídos na inteligência, fazendo graça com as palavras e nunca alterou a voz comigo.

O quarto dele tinha coisas maravilhosas para uma criança, e ele nos deixava entrar lá. Na verdade, eram dois quartos conjugados. Havia uma geladeira pequena, um rádio portátil bege, uma coleção de canivetes, algumas armas de fogo e facões. Tinha também um cofre, cheio de segredos, uma mesa alta, tipo escritório, com muitos papéis, montes de revistas e jornais. Até quando ele fazia a barba com barbeador elétrico, nos deixava ficar. Empoava o rosto e retirava os pelos com a máquina cujo motor ligado fazia um barulho de abelhas. Quando mais novo cultivava um lustroso bigode. Aparava os pelos e os penteava com uma escova de cerdas naturais. Numa época usou cabelos compridos cobrindo o pescoço e usava touca de meia para domá-los. Usava palitos de dente tipo português, de uma ponta só, e a outra triangular, e a pasta de dentes era Philips.  Tudo nele era ritualístico. Os netos observavam embasbacados.

Namorador, na ocasião em que operava a máquina de projeção de filmes no Cine Ypiranga, na Rua Melo Viana, foi muitas vezes infiel, teve filhos fora do casamento e matou a minha avó de desgosto. Ela pensou em deixar a casa e ir morar com um de seus irmãos com os cinco filhos que tinha então. Mas teve de se conformar e voltar. Impossível, pois era 1941. Já idosos, presenciei uma cena comovente. Meu avô disse:
- Du, eu te fiz sofrer. Queria que você me perdoasse. Eu te amo.
-Eu o perdoo, Petro, mas não me esqueço não.

Depois que minha avó Du morreu, de infarto fulminante, como apenas os muito bons morrem, após meu trabalho, ia visitar vovô e ficávamos conversando no alpendre. Orgulhava-se por eu ser médica, assim como minha mãe, pois esta acabou também se formando aos 40 anos. Em 1952 ela quis estudar Medicina em Belo Horizonte, mas ele não a deixou ir.

Pensávamos que minha avó era quem segurava a família, pois os filhos e netos a rodeavam diariamente. Receávamos que as visitas findassem, após sua morte, mas continuaram, surgindo o hábito de o meu avô servir um lanche bem peculiar, e nas embalagens originais: queijo, salame, pururuca, goiabada, biscoito de resina e refrigerante, para pelo menos dez pessoas, todos os dias, após as 18 horas. Surgiu o terço nas terças-feiras, que persiste até hoje, mesmo 16 anos após a morte dele.

Petronilho aprendeu a tocar clarineta, quando menino, e se vangloriava de conhecer a escrita musical. Também foi um dos primeiros a dirigir carro na cidade, embora nunca tenha tido automóvel próprio.  À medida que progredia na empresa, cujo dono João Paculdino foi seu grande amigo e conselheiro, foi aprimorando-se, comprou coleções de livros, formando uma biblioteca, e quando foi casar as filhas fez grandes festas, com Champagne francês e whisky escocês White Horse, além de passar a frequentar o Lions e a Maçonaria, lá recebendo todos os títulos e honrarias.  Ocupou por três mandatos o cargo equiparável ao de vice-presidente, podendo ter recebido o título de Venerável.

Na ocasião em que a loja do meu pai acabou, foi vovô quem cobriu as dívidas, e quando foi preciso, chegou a pagar a nossa escola. Se num dia o diretor do Colégio Marista São José, Irmão Ladislau lia meu nome de devedora da mensalidade em frente à turma e me mandava ir embora, no dia seguinte eu estava de volta, pois meu avô pagava para eu retornar.

Petronilho tinha hábitos simples, não fumava, não bebia e lia seu jornal sem óculos. Passava as férias na fazendinha Aliança do seu irmão Indalício, ou então no Hotel São Domingos em Belo Horizonte. De pé, pois não se permitia sentar num banco de jardim, andava orgulhoso pela cidade. Elegante e respeitado, aos 89 anos, afirmava não saber de que iria morrer, pois não sentia nada. Lúcido e independente, inclusive operando conta bancária, fazendo compras e morando sozinho, sofreu uma queda, morrendo três meses antes de se tornar nonagenário. Amou a sua Du até o fim, contando os dias sem ela, incansável, durante quase doze anos.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Prazer em conhecê-lo, Sr. Petronilho. Sua neta pintou um incrível retrato seu! Abraços, Mara.

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  2. Era bravo ao seu modo, o que por aqui se chama "sistemático", mas não tivemos desavenças, mesmo com grande convívio. Obrigada Marcelo pela simpatia de sempre.

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