O que era primavera virou verão
* Por
Antonio de Campos
O livre-pensamento é
uma posição filosófica sem restrições ortodoxas
Depois que um cristão
copta lançou o filme-trailer A Inocência dos Muçulmanos, mostrando cenas de
alcova entre Maomé e sua esposa, Kadidja, dentre outras mulheres, a Primavera
árabe virou Verão para o Ocidente, em especial para os Estados Unidos, onde a
grande obra darte foi engendrada.
A ironia dessa falta de
respeito defendida por libertinos liberais como democrática e constitucional
“liberdade” de expressão, desde que não envolva seus princípios, caso tenham
algum, é o fato de estar acontecendo no mesmo momento em que foi descoberto
fragmento de pergaminho com inscrição que leva a supor que Jesus era casado,
fato já conhecido e relatado nos Evangelhos considerados apócrifos pela Igreja
em seu milenar horror à Vida desde seu proto-padre – o apóstolo Paulo.
Evangelhos apócrifos
(tão “apócrifos” como os “canônicos”) são aqueles que Irineu, Bispo de
Lyon/França, no ano de 180 (cem anos depois de terem sido escritos), mandou
para a fogueira por “perceber a dificuldade que as pessoas teriam em aceitar
textos tão fantasiosos”, segundo o padre Elmo Heck.
De uma compreensão sem
par esse Bispo de Lyon.
O padre Heck, como se
deduz, esteve com Irineu para ficar sabendo de sua percepção sobre que
evangelho por ser fantasioso era “apócrifo” ou não.
Nem era preciso.
Os padres se entendem
desde Paulo.
Um texto que relatasse
Jesus casado, mais próximo à humanidade, já que, segundo mirabolância teológica
da Igreja, além de natureza divina, também possui natureza humana (exceto para
fins de alcova), é fantasiosa.
Santo Irineu, inspirado
pelo Divino Espírito Santo, logo concluiu que as pessoas teriam dificuldade em
aceitar a fantasia do matrimônio de Jesus, um absurdo, mas, dentre outros
tantos delírios, Jesus ser filho duma Virgem com ninguém menos do que Deus, o
perfeitíssimo Espírito, haver ressuscitado e estar prestes a voltar há 2.012
anos, por enquanto, para julgar os mortos e os vivos, se ainda vivos existirem
no Planeta quando de seu regresso (relatos fantásticos das religiões
precedentes, plagiados, repaginados e costurados no mais belo e acabado
patchwork mitológico jamais produzido), não implica em nenhuma fantasia (só o
simples fato natural de Jesus ser casado), as pessoas, adaptadas à troca de
Deuses no milenar panteão, entendem.
O diretor da revista
francesa Charlie Hobdo, depois de colocar mais lenha à fogueira da Inquisição
das Arábias, declarou cinicamente que a revista já havia publicado charges com
o papa. Só não revelou o nível de libertinagem entre a charge envolvendo o
Representante de Deus na Terra e o último Profeta desse mesmo Deus.
A armadilha na qual os
árabes caíram, “armadilha” esta inconscientemente montada por Maomé, que era Profeta,
o último e definitivo, mas não previu esse fato dentre tantos outros, foi ter
reconhecido Abraão como Pai dos Profetas, Pai dos árabes e primeiro muçulmano
existente e Jesus (apenas) como um Profeta, cujo Pai e Deus se revelou a cada
um dos dois povos e a cada uma das três religiões (as três únicas religiões
“verdadeiras”, ditadas pelo próprio Deus em três momentos históricos distintos)
com versões diferentes e antagônicas de sua Palavra:
Palavra de Javé, Palavra
de Jesus, oposta à Palavra de Javé, seu Pai e Deus como ele, contradizendo-se a
si próprio, e a Palavra de Allah, Deus solteirão, oposta à Palavra de Jesus e à
Palavra de Javé. Daí, segue-se que – cada religião é a “verdadeira”, revelada
por Deus, e intolerante e preconceituosamente excludente de todas as demais
religiões e os cristãos podem atear fogo ao Alcorão, a Palavra de Deus para os
muçulmanos, mas os muçulmanos, presos à Armadilha de Allah/Maomé, não podem
atear fogo a Bíblia, a Palavra de Deus para judeus (o Antigo Testamento) e cristãos
(o Antigo e o Novo Testamentos), como, do mesmo modo, os judeus podem negar e
corretamente negam Jesus, mas os cristãos não podem negar Abraão, cujo Deus
(Javé) gerou Jesus, sendo Jesus também Deus, mas não para judeus &
muçulmanos. Meu Deus que sarapatel dos Diabos!
Já que cristãos
lançaram o Alcorão à fogueira (como fizeram soldados de Cristo, evangélicos
templários modernos, destacados no Afeganistão), o ideal, em termos de
libertação das superstições teológicas das três únicas religiões “verdadeiras”
do mundo por serem reveladas pelo próprio Deus, ainda que conflitantes entre
si, seria os muçulmanos também atearem fogo à Bíblia (o clérigo Abu Islam,
diante da embaixada dos Estados Unidos, no Cairo, já deu início a uma adaptação
à babilônica Lei de Talião: livro por livro, revelação por revelação, rasgando
o exemplar duma Bíblia) e se dessem as mãos judeus, cristãos & muçulmanos e
se tiverem de ir às tapas – e Irã(o) –, que, pelo amor de Deus, por Deus não
seja, mas pelo Homem até no que este tem de negação de si próprio, pois é
melhor lutar pelo Homem, existente, do que por um Deus que o homem criou à sua
mísera imagem e caricata semelhança.
Não há realmente
necessidade de se queimar nem o Alcorão, nem o Antigo e o Novo Testamentos,
bastaria tão-somente serem reescritos, sendo, como tão compreensivamente
entendeu Irineu de Lyon, postas de lado as fantasias encontradas nesses três
únicos livros que contêm a “Verdade” que oprime, libertando-nos da psicopatia
religiosa, enxugando-os, depurando-os, desteologizando-os (já passa do tempo!),
tornando-os mais humanos, reabilitando os evangelhos “canônicos”, no caso
cristão, com um Cristo dono de casa, que por aqui viveu e morreu como todos os
homens, com esposa, mulher (e pai de filhos, já que a esterilidade entre os
judeus era considerada um castigo de Javé – Israel precisava de guerreiros para
enfrentar seus inimigos, este o verdadeiro castigo, hoje já dispomos de
tratamento para fertilidade e Javé castigador & punidor foi posto na
geladeira), uma vez que o casamento, segundo fantasia eclesiástica, é um
sacramento, mas nenhum padre, contrariando a Natureza, para si o deseja a fim
de mais se santificar.
Um dia lá chegaremos,
se Javé, Allah e Deus quiserem, caso não continuemos indo como estamos, levando
tais conceitos religiosos demasiadamente a sério e o Homem sempre a seu
reboque.
*
Escritor e advogado
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