segunda-feira, 16 de junho de 2014

O que era primavera virou verão

* Por Antonio de Campos

O livre-pensamento é uma posição filosófica sem restrições ortodoxas

Depois que um cristão copta lançou o filme-trailer A Inocência dos Muçulmanos, mostrando cenas de alcova entre Maomé e sua esposa, Kadidja, dentre outras mulheres, a Primavera árabe virou Verão para o Ocidente, em especial para os Estados Unidos, onde a grande obra darte foi engendrada.

A ironia dessa falta de respeito defendida por libertinos liberais como democrática e constitucional “liberdade” de expressão, desde que não envolva seus princípios, caso tenham algum, é o fato de estar acontecendo no mesmo momento em que foi descoberto fragmento de pergaminho com inscrição que leva a supor que Jesus era casado, fato já conhecido e relatado nos Evangelhos considerados apócrifos pela Igreja em seu milenar horror à Vida desde seu proto-padre – o apóstolo Paulo.

Evangelhos apócrifos (tão “apócrifos” como os “canônicos”) são aqueles que Irineu, Bispo de Lyon/França, no ano de 180 (cem anos depois de terem sido escritos), mandou para a fogueira por “perceber a dificuldade que as pessoas teriam em aceitar textos tão fantasiosos”, segundo o padre Elmo Heck.

De uma compreensão sem par esse Bispo de Lyon.

O padre Heck, como se deduz, esteve com Irineu para ficar sabendo de sua percepção sobre que evangelho por ser fantasioso era “apócrifo” ou não.

Nem era preciso.

Os padres se entendem desde Paulo.

Um texto que relatasse Jesus casado, mais próximo à humanidade, já que, segundo mirabolância teológica da Igreja, além de natureza divina, também possui natureza humana (exceto para fins de alcova), é fantasiosa.

Santo Irineu, inspirado pelo Divino Espírito Santo, logo concluiu que as pessoas teriam dificuldade em aceitar a fantasia do matrimônio de Jesus, um absurdo, mas, dentre outros tantos delírios, Jesus ser filho duma Virgem com ninguém menos do que Deus, o perfeitíssimo Espírito, haver ressuscitado e estar prestes a voltar há 2.012 anos, por enquanto, para julgar os mortos e os vivos, se ainda vivos existirem no Planeta quando de seu regresso (relatos fantásticos das religiões precedentes, plagiados, repaginados e costurados no mais belo e acabado patchwork mitológico jamais produzido), não implica em nenhuma fantasia (só o simples fato natural de Jesus ser casado), as pessoas, adaptadas à troca de Deuses no milenar panteão, entendem.

O diretor da revista francesa Charlie Hobdo, depois de colocar mais lenha à fogueira da Inquisição das Arábias, declarou cinicamente que a revista já havia publicado charges com o papa. Só não revelou o nível de libertinagem entre a charge envolvendo o Representante de Deus na Terra e o último Profeta desse mesmo Deus.

A armadilha na qual os árabes caíram, “armadilha” esta inconscientemente montada por Maomé, que era Profeta, o último e definitivo, mas não previu esse fato dentre tantos outros, foi ter reconhecido Abraão como Pai dos Profetas, Pai dos árabes e primeiro muçulmano existente e Jesus (apenas) como um Profeta, cujo Pai e Deus se revelou a cada um dos dois povos e a cada uma das três religiões (as três únicas religiões “verdadeiras”, ditadas pelo próprio Deus em três momentos históricos distintos) com versões diferentes e antagônicas de sua Palavra:

Palavra de Javé, Palavra de Jesus, oposta à Palavra de Javé, seu Pai e Deus como ele, contradizendo-se a si próprio, e a Palavra de Allah, Deus solteirão, oposta à Palavra de Jesus e à Palavra de Javé. Daí, segue-se que – cada religião é a “verdadeira”, revelada por Deus, e intolerante e preconceituosamente excludente de todas as demais religiões e os cristãos podem atear fogo ao Alcorão, a Palavra de Deus para os muçulmanos, mas os muçulmanos, presos à Armadilha de Allah/Maomé, não podem atear fogo a Bíblia, a Palavra de Deus para judeus (o Antigo Testamento) e cristãos (o Antigo e o Novo Testamentos), como, do mesmo modo, os judeus podem negar e corretamente negam Jesus, mas os cristãos não podem negar Abraão, cujo Deus (Javé) gerou Jesus, sendo Jesus também Deus, mas não para judeus & muçulmanos. Meu Deus que sarapatel dos Diabos!

Já que cristãos lançaram o Alcorão à fogueira (como fizeram soldados de Cristo, evangélicos templários modernos, destacados no Afeganistão), o ideal, em termos de libertação das superstições teológicas das três únicas religiões “verdadeiras” do mundo por serem reveladas pelo próprio Deus, ainda que conflitantes entre si, seria os muçulmanos também atearem fogo à Bíblia (o clérigo Abu Islam, diante da embaixada dos Estados Unidos, no Cairo, já deu início a uma adaptação à babilônica Lei de Talião: livro por livro, revelação por revelação, rasgando o exemplar duma Bíblia) e se dessem as mãos judeus, cristãos & muçulmanos e se tiverem de ir às tapas – e Irã(o) –, que, pelo amor de Deus, por Deus não seja, mas pelo Homem até no que este tem de negação de si próprio, pois é melhor lutar pelo Homem, existente, do que por um Deus que o homem criou à sua mísera imagem e caricata semelhança.

Não há realmente necessidade de se queimar nem o Alcorão, nem o Antigo e o Novo Testamentos, bastaria tão-somente serem reescritos, sendo, como tão compreensivamente entendeu Irineu de Lyon, postas de lado as fantasias encontradas nesses três únicos livros que contêm a “Verdade” que oprime, libertando-nos da psicopatia religiosa, enxugando-os, depurando-os, desteologizando-os (já passa do tempo!), tornando-os mais humanos, reabilitando os evangelhos “canônicos”, no caso cristão, com um Cristo dono de casa, que por aqui viveu e morreu como todos os homens, com esposa, mulher (e pai de filhos, já que a esterilidade entre os judeus era considerada um castigo de Javé – Israel precisava de guerreiros para enfrentar seus inimigos, este o verdadeiro castigo, hoje já dispomos de tratamento para fertilidade e Javé castigador & punidor foi posto na geladeira), uma vez que o casamento, segundo fantasia eclesiástica, é um sacramento, mas nenhum padre, contrariando a Natureza, para si o deseja a fim de mais se santificar.

Um dia lá chegaremos, se Javé, Allah e Deus quiserem, caso não continuemos indo como estamos, levando tais conceitos religiosos demasiadamente a sério e o Homem sempre a seu reboque.

* Escritor e advogado


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