segunda-feira, 16 de junho de 2014

Parceiro de tabelinha

* Por Daniel Santos


De uma vez que cabulei aula, ainda na primeira série, escapuli aos fundos da escola com uma bola de meia para jogar sozinho, praticar embaixadas, sei lá, mas ganhei um súbito e desconhecido companheiro.

Mal penetrei naquele sítio baldio, onde amontoava-se material de demolição, ele surgiu apenas de short e, sem nada dizer, acenou que lhe passasse a bola. Assim, em silêncio, começamos a jogar um para o outro.

Às tantas, sem me encarar, perguntou se eu ia sempre ali. Ao lhe responder que apenas cabulava aula, sobressaltou-se: “Quer dizer, então, que amanhã você pode não aparecer? Isso vai ser ruim, muito ruim”.

Em seguida, avançou como um pequeno selvagem e me arrancou o relógio de pulso. Nem tive como reagir. E mais perplexo fiquei quando ele disse: “Só devolvo, se me trouxer um parceiro que venha jogar sempre”.

A essa altura, sua pele tornou-se algo azulada, unhas e lábios quase roxos. Não era alguém deste mundo – entendi. E mais sinistro se revelou ao me ameaçar: “Enquanto estiver com o relógio, controlarei teu tempo”.

Saí dali atônito, mas logo me ocorreu quem poderia entregar ao solitário diabrete: um tal sem nome nem endereço que costumava me atirar pedras quando chegava à escola limpo e bem vestido toda manhã.

Disse-lhe que um outro igual a ele tinha no pulso um relógio de grande valor e que seria fácil assaltar o fracote. Daí em diante, ou muito  bem se entenderam ou aniquilaram-se. Certo é que nunca mais os vi.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



Um comentário:

  1. Maravilha de conto. Encantador, tal qual os demoniozinhos que jogavam futebol. Especial o momento do arrancamento do relógio e o consequente controle do tempo. Dá prêmio.

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