domingo, 8 de junho de 2014

O gato

* Por Laís de Castro



Era um gato repulsivo, acabrunhante, como uma fatia de um triângulo isósceles, um olho na frente, um pedaço de rabo e as quatro patas rematadas para trás. Rajado, como seus três irmãos perfeitos que haviam sido atirados muro adentro daquela chácara velha como a de Braga, de antigas árvores e velhos móveis, onde as pessoas tinham idades variadas. vagavam por ali quatro gatos, livres, que ganhavam sua ração de comida diária e mais quatro não fariam nenhuma diferença, não faz mal, deixa eles , se jogar na rua os bichanos morrem.

No início, pequeninos, naquela concentração comum aos felinos, ninguém notou que entre eles se criava aquele estropício, aquela náusea ambulante que depois viria à luz para pasmo geral. Eles se amontoaram num canto da despensa, de onde se via o chão da cozinha de cimento lisinho, pintado de vermelhão, aquele que se junta ao cimento para lhe dar cor desde sempre e que andou ficando na moda por uns tempos, em verde, em ambientes de decoração sofisticados, sabe-se o que as pessoas inventam. O fogão a lenha parecia uma bolha nascida do chão, meio arredondado, as arestas desgastadas pelo tempo. O fogo, encostado aos canos que serpenteavam ao seu redor, esquentava a água dos chuveiros e aquecia também a própria casa. Sobre o fogão, em cima, um barbante encardido sustentava lingüiças gordas que, ao sabor da fumaça, deixavam cair gotas de gordura sobre a chapa de ferro, ecoando a lembrança de fritura inexistente e espalhando um cheiro de dar água na boca até no mais inapetente dos homens. Essas lingüiças defumadas eram usadas na medida da necessidade e renovadas a cada vez que se matava um porco no chiqueiro. Diante do fogão, Filomena, a tia Nastácia que Monteiro Lobato não teve, de , cozinhava há tantas décadas, que mais parecia uma estátua de bronze, fincada ali, ereta e eterna.

Os gatos começavam a ir e vir, da maneira que podem ir e vir filhotes pequeninos, ainda de olhos meio fechados e ninguém se ocupou deles até que o hediondo se mostrou, ou foi visto, pobre coitado, desencadeando uma gritaria em cadeia, uma correria histérica como se tivesse chegado ali um frankstein em carne e osso,  instalando no ar uma bomba de pavio aceso, prestes a explodir, mas que ficava na ameaça. Cada mulher que o fitava tinha, por ordem, primeiro um chilique e depois dava uma opinião é bicho do diabo, deus me proteja, isso vai trazer sete anos de azar, nunca mais vou dormir de noite, socorro, valei-me me São Francisco, que este bicho nem o senhor gostaria mesmo sendo protetor dos animais.

Apenas a menina não gritou, foi chegando e tomou-o ao colo, fez um carinho nas costas pontudas, na cabeça disforme e decretou que aleijão ia ser dela e se chamar Cambuquira. Porque cambuquira menina, cambuquira é broto de abóbora e esse viscoso está longe de se parecer com um, escolhe outro gato e outro nome, pega aquela bichana de olhos azuis ali, tão linda, agora ficar com esse troncho no colo, vão falar na vila que você endoidou como o Preto que precisou até amarrar, deixa que eu cuido dele, creindeuspai que a desgraça não se amoite nessa casa.

O problema estava plantado quando os homens chegaram do trabalho na hora do pôr-do-sol. Mata não mata, depois a gente resolve, ninguém sabia se ouvia o sábio conselho do padre sobre o inédito, demoraram tanto pra resolver que o bicho foi ficando, ficando, a história sempre se repete, ninguém quer ser responsável e a menina pra e pra com aquele erro genético no braço. Foi então que se deu o acontecido e todos vão dizer de novo que eu estou mentindo e eu vou acrescentar ainda uma vez que na minha família tem de tudo mas não tem mentiroso.

O gato era fino, falei, como um triângulo fatiado. E a sala da casa era de tábuas que, de tanto ser lavadas, friccionadas, ungidas e atritadas, além de lisas como vidro, foram criando frestas entre si. Todo mundo sabe o que vou dizer e foi isso mesmo que sucedeu, o bicho monocular caiu numa destas frestas, por onde nenhum gato comum passaria e de baixo, danou-se a expor seu miado gutural ao mundo. A menina se desesperou quero Cambuca de volta, até apelido carinhoso ele tinha como se pode concluir. Miava ele embaixo e chorava ela em cima, batendo o e pedindo ao pai que arrancasse uma das tábuas para soltar o bichano, tenho que soltar mesmo, senão esse excremento morre embaixo e a casa inteira vai miasmar, o pai, contrariado.

Seja feita a vontade do destino, esse desinfeliz tinha que cair ali, vai deixar uma cicatriz no chão da sala, a tábua nunca mais será a mesma. O trabalho não foi pouco, duas horas serrando dum lado e do outro, tiveram que se revezar os homens, e enfim, exaustos como depois do amor, tiraram a maciça tábua de aroeira do chão. O infame pulou no colo da dona e ganhou beijos, as mulheres resolveram aproveitar para limpar o buraco e adjacências e os homens avisaram que a recolocação seria feita no dia seguinte, indo para o banho frio que o fogo morrera no borralho há muito tempo.

O episódio inédito espalhava pela casa uma excitação incomum, tudo era tão monótono, as mulheres davam risadas nervosas enquanto esfregavam a lacuna negra que parecia uma cova à espera de um corpo, quando uma delas topou com algo resistente, empurra o rodo daqui e dali e não vai, empurra mais e nada. É isso mesmo que você pensou, porque a vida imita a arte e ninguém inventa a roda, tudo acaba se parecendo, esse episódio seria o primeiro de dezenas de outros que você vai ter que inferir. A casa era deles há mais de 70 anos e, com certeza, aquele pacote tinha sido depositado ali na época da construção. E trazia barras de ouro, tantas, que tornaria rica, bem rica mesmo, a família inteira, até Filó, num piscar de olhos. Eles estavam atônitos, perplexos, tomados de assombro e com medo, teria o tataravô mandado o gato porque aquele bando de incompetentes nunca conseguira dinheiro para uma reforma? E se eles tivessem jogado o bicho no rio?

Primeira providência: combinaram de não contar nada a ninguém até ter certeza de que aquilo era ouro, poderia ser, o velho era podre de rico, acendia cigarro com nota de dinheiro, gastou tudo, era odiado pelos descendentes por isso. Agora teriam de rever aquele sentimento de ódio e trocá-lo por respeito e amor, ia ser bem difícil, como trocar a mulher ou o marido pelo pior inimigo, de repente, ter que amar quem a gente abominou a vida inteira. Era complicado era tudo culpa daquele animal infame, mas sem ele ninguém teria o ouro, também com o nauseabundo iria ser preciso recodificar o sentimento, estavam todos confusos quando ouviram aquele barulho seco. Vou falar logo, sem rodeios ou demandas: tia Lótinha caíra no buraco da tábua e estava morta. Ele cumpria seu destino de cova rasa. Causa mortis: pancada seca na têmpora e não vou mais tocar neste assunto. Uma no cravo e outra na ferradura. Bem, ela teria um funeral de luxo, se é que pode servir de consolo a alguém. E o dinheiro dos sequilhos que vendia, antes essencial como o ar que respiravam, agora não faria falta nenhuma.

Posso dizer, e mais não digo ou direi, que um arrepio gelado percorreu a espinha de todos, menos a da menina. Ela adorava a idéia de ser rica e detestava a tia morta. Aquele gato começava a lhe parecer muito útil.

* Jornalista, atuou no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda,  8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e na Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.

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