O gato
* Por Laís de Castro
No início ,
pequeninos , naquela concentração
comum aos felinos ,
ninguém notou que
entre eles
se criava aquele estropício, aquela náusea
ambulante que
depois viria à luz
para pasmo geral . Eles se
amontoaram num canto da despensa, de onde se via o chão da cozinha
de cimento lisinho, pintado
de vermelhão , aquele
pó que
se junta ao cimento
para lhe dar cor desde sempre e que andou ficando na moda por uns tempos ,
em verde ,
em ambientes
de decoração sofisticados, sabe-se lá o que as pessoas
inventam. O fogão a lenha
parecia uma bolha nascida
do chão , meio
arredondado, as arestas desgastadas pelo tempo . O fogo , encostado aos canos
que serpenteavam ao seu
redor , esquentava a água
dos chuveiros e aquecia também a própria
casa . Sobre
o fogão , lá
em cima ,
um barbante
encardido sustentava lingüiças gordas que , ao sabor
da fumaça , deixavam cair
gotas de gordura
sobre a chapa
de ferro , ecoando a lembrança
de fritura inexistente
e espalhando um cheiro
de dar água
na boca até
no mais inapetente
dos homens . Essas lingüiças
defumadas eram usadas na medida da necessidade e renovadas a cada
vez que
se matava um porco
no chiqueiro . Diante
do fogão , Filomena, a tia Nastácia que
Monteiro Lobato não teve, de pé , cozinhava há tantas décadas ,
que mais
parecia uma estátua de bronze , fincada ali ,
ereta e eterna .
Os gatos
começavam a ir e vir , da maneira que
podem ir e vir filhotes pequeninos ,
ainda de olhos
meio fechados e ninguém se ocupou deles até que o hediondo se mostrou, ou
foi visto , pobre
coitado , desencadeando uma gritaria em cadeia , uma correria
histérica como
se tivesse chegado ali
um frankstein em
carne e osso , instalando no ar
uma bomba de pavio
aceso , prestes
a explodir, mas que
ficava na ameaça . Cada
mulher que
o fitava tinha , por
ordem , primeiro
um chilique
e depois dava uma opinião
é bicho do diabo ,
deus me
proteja, isso vai trazer
sete anos
de azar , nunca
mais vou dormir
de noite , socorro ,
valei-me me São
Francisco, que este
bicho nem
o senhor gostaria mesmo
sendo protetor dos animais .
O problema
estava plantado quando os homens chegaram do trabalho
na hora do pôr-do-sol. Mata
não mata , depois a gente
resolve, ninguém sabia se ouvia o sábio conselho
do padre sobre
o inédito , demoraram tanto
pra resolver
que o bicho
foi ficando, ficando, a história sempre se repete, ninguém
quer ser responsável e a menina
pra cá
e pra lá
com aquele
erro genético
no braço . Foi então
que se deu o acontecido e todos vão dizer de novo que eu estou
mentindo e eu vou acrescentar
ainda uma vez
que na minha
família tem de tudo
mas não
tem mentiroso .
O gato
era fino ,
já falei, como
um triângulo
fatiado. E a sala da casa era de tábuas
que , de tanto
ser lavadas, friccionadas, ungidas e atritadas, além de lisas como
vidro , foram criando frestas entre si . Todo mundo já sabe o
que vou dizer
e foi isso mesmo
que sucedeu, o bicho
monocular caiu numa destas frestas , por onde nenhum gato comum passaria e lá
de baixo , danou-se a expor
seu miado
gutural ao mundo .
A menina se desesperou quero Cambuca de volta , até apelido carinhoso
ele já
tinha como
se pode concluir . Miava ele
embaixo e chorava ela
em cima ,
batendo o pé e pedindo ao pai que
arrancasse uma das tábuas para
soltar o bichano, tenho que
soltar mesmo ,
senão esse
excremento morre lá
embaixo e a casa
inteira vai miasmar, o pai , contrariado.
Seja feita
a vontade do destino ,
esse desinfeliz
tinha que
cair ali , vai
deixar uma cicatriz
no chão da sala ,
a tábua nunca
mais será a mesma .
O trabalho não
foi pouco , duas horas serrando dum lado e do outro ,
tiveram que se revezar
os homens , e enfim ,
exaustos como
depois do amor ,
tiraram a maciça tábua
de aroeira do chão .
O infame pulou no colo
da dona e ganhou beijos ,
as mulheres resolveram aproveitar
para limpar o buraco e adjacências
e os homens avisaram que a recolocação
seria feita no dia
seguinte , indo para
o banho frio
que o fogo
já morrera no borralho
há muito tempo.
O episódio
inédito espalhava pela
casa uma excitação
incomum , tudo
lá era
tão monótono ,
as mulheres davam risadas
nervosas enquanto esfregavam a lacuna negra que parecia uma cova
à espera de um
corpo , quando
uma delas topou com algo
resistente, empurra o rodo daqui e dali
e não vai, empurra mais
e nada . É isso
mesmo que
você pensou, porque
a vida imita a arte
e ninguém inventa
a roda , tudo
acaba se parecendo, esse episódio seria só
o primeiro de dezenas
de outros que
você vai ter que inferir . A casa era deles
há mais de 70 anos
e, com certeza ,
aquele pacote
tinha sido depositado ali na época da construção . E trazia barras
de ouro , tantas, que
tornaria rica , bem
rica mesmo ,
a família inteira ,
até Filó ,
num piscar de olhos .
Eles estavam atônitos ,
perplexos , tomados de assombro e com medo , teria o tataravô
mandado o gato
porque aquele
bando de incompetentes
nunca conseguira dinheiro
para uma reforma? E se eles
tivessem jogado o bicho no rio ?
Primeira providência :
combinaram de não contar
nada a ninguém
até ter certeza de que aquilo era ouro , só poderia ser , o velho era podre de rico , acendia cigarro com nota de dinheiro , gastou tudo , era
odiado pelos descendentes
por isso. Agora teriam de rever
aquele sentimento
de ódio e trocá-lo por
respeito e amor ,
ia ser bem difícil , como trocar a mulher ou o marido pelo pior inimigo , de repente ,
ter que amar quem a gente abominou a vida
inteira . Era
complicado era tudo
culpa daquele animal
infame , mas
sem ele
ninguém teria o ouro ,
também com
o nauseabundo iria ser
preciso recodificar o sentimento , estavam todos
confusos quando ouviram aquele barulho seco . Vou falar logo , sem rodeios ou demandas : tia
Lótinha caíra no buraco da tábua e estava morta .
Ele cumpria seu
destino de cova
rasa . Causa
mortis: pancada seca
na têmpora e não
vou mais tocar
neste assunto . Uma no cravo
e outra na ferradura .
Bem , ela teria
um funeral
de luxo , se é que
pode servir de consolo
a alguém . E o dinheiro
dos sequilhos que
vendia, antes essencial
como o ar
que respiravam, agora
não faria falta
nenhuma.
Posso dizer ,
e mais não
digo ou direi, que
um arrepio
gelado percorreu a espinha de todos , menos a
da menina . Ela
adorava a idéia de ser
rica e detestava a tia
morta . Aquele
gato começava a lhe
parecer muito
útil .
* Jornalista, atuou no
grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11
na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e na
Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora
Siciliano.
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