segunda-feira, 2 de junho de 2014

Olhinhos de inveja

* Por Daniel Santos


O longo pio do mocho partiu de algum lugar da planície, atravessou lagares e chegou à cidade com um arrepio de intimidar insones, a ponto de recolherem os pés para baixo do cobertor e adormecerem de imediato.

Percorreu ruas e avenidas mas, ao entrar na praça, o pio encorpou-se, mais parecia o urro de um ogro. Metia medo. E o que era vivo trocou a tranqüilidade da madrugada por uma expectativa de dar cabo dos nervos.

Logo em seguida, um tropel: o coche da noite adentrou o cenário de sombras com imponência funérea. Impunha autoridade como um grande imperador que devasta oposições. E recolhia de tudo, morto fosse.

Quanto aos vivos... Ao passar por eles, o coche diminuiu a marcha, talvez para assustá-los ainda mais, talvez para avisar-lhes que a vida não passa de um débil hífen entre passado e futuro, hausto de pouco fôlego.

Diante dos namorados, no entanto, o coche estacou: nada podia contra quem proclamava a Vida! Quem lá dentro viajava acendeu olhinhos de inveja no breu da praça. Depois, resignado, o coche se afastou da cena.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


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