A lira terçã e a liquidez de rocha
* Por
Aleilton Fonseca
As
palavras batem forte
no
coração dos poetas.
Fernando
da Rocha Peres
A lírica do século XX
entra em balanço com um saldo positivo, tendo legado uma rica experiência
criativa que continuará alimentando os poetas por muito tempo. Isto porque a
poesia moderna quebrou, de uma vez por todas, as regras clássicas que teimavam
em resistir, e desdobrou-se em múltiplas possibilidades. Neste processo, as
conquistas formais, a diversidade de temas, a concepção do poema como
construção verbal, a reflexão metapoética, a liberdade dos ritmos, a
multiplicidade da linguagem, a visão irônica e/ou agônica da condição humana
compõem a gama de elementos essenciais de uma poesia que, geralmente, assumiu a
atitude crítica, como discurso reflexivo que se confronta com a sociedade
tecnocrática e dela se nutre.
Trata-se de um universo
que parece prescindir do poético na sua organização estrutural, mas que, por
isso mesmo, necessita visceralmente de sua manifestação como um acometimento,
uma “doença” benigna, um processo de depuração existencial e de defesa, através
do qual se sustenta o equilíbrio precário do sujeito sensível num mundo
problemático.
Febre terçã, livro mais
recente do poeta Fernando da Rocha Peres (Salvador: editora Corrupio, 2000; 144
págs. Preço: R$20), deve ser lido e discutido como peça desse legado na poesia
baiana, tanto pelo exercício das liberdades modernas, como pela diversidade de
temas que, trabalhados quase sempre em tom de reflexão, com uma ironia clara ou
subliminar, resulta num balanço de atitudes e de práticas, levando em conta o
próprio ofício de poeta e seu percurso pelo universo de vivências e
significações.
Neste livro, Rocha
Peres apresenta uma poesia que fixa na diversidade seu ponto de equilíbrio,
embora sempre em tensão, do que decorre sua força expressiva e sua madureza. De
fato, o resultado reflete a condição de um autor que assume posição polifônica
de historiador, estudioso da cultura e poeta, cuja experiência, como tal,
também se converte em matéria-prima de sua escrita. Assim, o universo que vem
freqüentando ao longo de sua vida se torna um mosaico de recortes privilegiados,
através de poemas contextualizados no espaço, no tempo e na cultura, qual fosse
uma súmula lírica da biografia afetivo-intelectual do autor.
O próprio título já
estabelece uma aproximação simbólica com a figura de Gregório de Mattos, autor
pesquisado por Peres, em cuja condição de morte - e metáfora de sua condição de
vida - uma febre terçã, inscreve o princípio norteador, a concepção e a
justificação da coletânea. Estes sinais convertem olivro em homenagem ao poeta
fundador, conforme assentado em nota paratextual introdutória. Tanto é assim,
que a abertura do livro se dá com o poema ipsis litteris, que define a poesia
através do alargamento dos sentidos de “febre terçã”, como movimento gerador da
manifestação lírica: “Poesia é maleita, /febre terçã que não se enjeita” (pág.
15).
Essa febre, no entanto,
é manifestação lírica de uma consciência crítica, constituída pelas vivências e
autorizada pela experiência: “Carrego idade bastante/ para ver...” O que o
poeta vê, revê, sente e significa são as imagens das andanças, as lições da
vida, a confissão do aprendizado, o registro dos amores, entre outras
experiências. Neste percurso, lugares, pessoas e situações desfilam como
motivos, como homenageados, como titulares de dedicatórias, como indícios e fonte
de onde fluem as vozes que incomodam os ouvidos atentos do poeta: “De onde
chegam as vozes? / Não perturbam, mas são de veludos, velados barulhos de
amores escondidos”. E, mas adiante: “As vozes aqui estão, acima dos registros./
Escutá-las é uma dádiva,/ música sem notações e partituras”. Essas “vozes”
assumem uma significação múltipla que engloba desde os sinais da intuição, até
as marcas das lembranças e dos registros, de onde fluem os discursos da poesia
in natura, como dádiva em potência, sem tangência concreta, em estado puro de
poesia.
Rocha Peres acredita
que o poema pode estar depositado no silêncio. Cabe ao poeta ouvi-lo,
resgatando-o da condição “inescrita” para a difícil imanência nas palavras: “O
poeta merece o poema, / mas é difícil pautar”. “O poema fica na imaginação:/
impassível, curtido, duro, / nona face da impossibilidade, / fome atiçada no
ar.”
Trata-se de uma
reconfiguração da dupla imagem drummundiana: a luta com palavras e a procura da
poesia, movimentos de superação do estado potencial para a difícil
concretização em palavras, como se reitera no poema “Anatomia” (pág 21) e, de
modo agudo, em “Heras”: “Urdir um poema/ é trabalho insano,/ loucura mesmo,/
palavra após palavra/ como heras no muro./ A poesia tem sua trama/ e, por isto,
requer malícia” (pág. 27). Essa confrontação com os sentidos do ato de poetar é
forte em todo o livro, atualizando um discurso que atravessou todo o século XX
como manifestação especular da lírica.
Certamente Peres
acredita, como pregava T.S. Eliot, que a poesia é o indispensável registro da
sensibilidade humana, de geração a geração, o que a torna um signo comunitário.
Cada poeta é um elo entre os demais, um vetor da corrente que torna o canto
poético uma sucessão de vozes que se comunicam e interagem. As referências
diretas e indiretas a poetas do passado e do presente, assim como a
intelectuais, artistas e amigos, ao lado de referências afetivas, como o pai,
os filhos, os amigos - projetam, no universo poético, o desejo de convivência e
comunicação simbólicas através da poesia.
De certa forma, Febre
terçã se inscreve na tradição moderna de uma poesia-síntese de vivências, pois
assume a feição de balanço de uma trajetória pessoal de vida, em sentido mais
amplo, respaldado no lastro biográfico. As identidades intelectuais e afetivas
aparecem nitidamente nas referências, no registro das viagens, nas homenagens,
em que nomes antigos e atuais, dentre poetas, artistas, vultos históricos,
santos, amigos e parentes são citados, referenciados e até intertextualizados
(“Evocanto para Gregório”, pág 129, por exemplo) com diferentes graus de
aproximação, refletindo as afinidades eletivas do autor, no plano intelectual,
artístico e pessoal.
A multiplicidade
temática desse livro torna-o eclético e às vezes surpreendente, com poemas
sobre aspectos e situações em torno de assuntos como amor, sexo, morte,
cotidiano, lugares, cidades, existência, sonho, história, religiosidade,
memória. O seu epicentro é sempre a reflexão febril em torno do ato de existir
e do encontro com o semelhante, no diálogo concreto ou simbólico que só a
poesia torna possível. Febre terçã pode ser visto como um balanço multifacetado
de experiências de vida e de autodecifração constante, enquanto movimento em
busca dos sentidos do ser-e-estar no mundo.
Por isso requer do
leitor um grau de identificação intelectual e/ou afetiva, tanto em torno das
reflexões que o autor propõe, como através da linguagem poética que adota.
Enfim, Fernando da Rocha Peres revela nas palavras as imagens de sua poética
pessoal, imantada na experiência lírica de um tempo precário de “poetas loucos,
videntes mancos/ memória crua, lições perdidas,/ fazer poesia, delírio cão.”
Palavra é dura rocha". Mas o poeta tem febre terçã. E o seu calor restaura
a liqüidez da rocha.
Aleilton Fonseca é
escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade
Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP
e do PEN Clube do Brasil.
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