Quem matou Karé, o último dos Juma?
* Por
José Ribamar Bessa Freire
"No domingo, o
vigário disse missa e as índias cantaram o Tantum Ergo com harmonia não
vulgar".
Alexandre Rodrigues
Ferreira, enviado ao Brasil pela Coroa Portuguesa para fazer pesquisas de
campo, percorreu durante oito anos (1785-1792) vastas áreas da Amazônia. Quando
passou pela vila de Ega, hoje Tefé, registrou em seu diário de viagem a
participação de índias de várias nações no ritual católico, entre elas mulheres
do povo Juma.
Denominados também Yuma
ou Arara, os Juma falam uma língua do tronco tupi-guarani da família
linguística Kagwahiva. Habitavam um território no rio Purus, que segundo Euclides
da Cunha, era "talvez a maior estrada por onde passavam e repassavam, há
muitos séculos, as tribos mais remotas dos extremos do continente".
No século XVIII, os
Juma somavam 12 a 15 mil indivíduos, conforme estimativas dos viajantes, mas a
população foi reduzida drasticamente no confronto com tropas portuguesas que
realizavam "guerras justas" - denominação dada ao violento e
predatório processo de recrutamento. Os que escapavam à morte, eram
aprisionados e levados para os "currais de índios" localizados nos
rios Solimões e Negro, de onde eram "repartidos" para fornecerem
trabalho compulsório aos colonos, aos missionários e à administração colonial
portuguesa.
Duzentos anos depois da
passagem de Alexandre Rodrigues Ferreira, as índias não cantam mais o Tantum
Ergo. Desesperadas, as únicas Juma sobreviventes em 1992, duas velhas que
respondem pelos nomes de "Baru" e "Inté", cumpriam todas as
noites um ritual de lamentos em que combinam choro e canto dramático.
O massacre de 1964
Quem exterminou os Juma
que conseguiram resistir até o século XX à escravização, à catequese e às
expedições punitivas?
O processo de
extermínio, iniciado pelo colonizador português no séc.XVIII, continuou nos
séculos seguintes já como ação de brasileiros.
Falas e mensagens dos presidentes da Província do Amazonas e relatórios
da Diretoria Geral dos Índios registram seguidos massacres contra os povos do
Purus, entre os quais os Juma, que resistiram corajosamente, conforme Günter
Kroemer, que consultou essa documentação analisada em seu livro de 1985
"Cuxiuara - o Purus dos Indígenas: ensaio etno-histórico e etnográfico
sobre os índios do médio Purus".
Kroemer conta que “de
um massacre numa maloca, no Içuã, sobraram apenas duas meninas. Levadas a
Canutama onde foram adotadas por Benedito dos Santos Pereira, logo morreram. Em
outras malocas não se teve piedade: os assaltantes jogavam crianças ao ar para
depois espetá-las na ponta do terçado; muitas foram jogadas na água, onde
morreram. Várias expedições punitivas foram feitas contra os índios. Mas, mesmo
com a ameaça de extermínio, não se entregaram".
Os sobreviventes se
refugiaram na bacia do rio Içuã. Nos anos 1960, sobreviviam no Igarapé da Onça,
próximo a Tapauá, algumas dezenas de índios Juma.
- Eu morei perto da
maloca daqueles índios desde 1907 e eles nunca mexeram comigo, nem com o meu
pessoal. Sempre foram mansos e pacíficos. Depois de muitos anos, conheci os
índios que sempre tive vontade de conhecer e aí ficamos amigos; quando eu ia
visitá-los, eles me tratavam muito bem. Várias vezes foram me deixar lá na
minha barraca - diz o sr. Luiz Chagas, morador de Tapauá.
No início de 1964, o
comerciante Orlando França, arrecadou dinheiro entre empresários locais e
organizou uma expedição dizendo que era para extrair sorva e castanha. Armados
até os dentes, ele, Antônio Craveiro, Antônio Branco, Chico Lúcio, Raimundo
Guimarães, Noel, Bernardo, Valdemir, um tal de "Soldado" e alguns
outros invadiram o território dos Juma.
Quando chegaram na
maloca, não havia ninguém lá. Tiraram sorva à vontade. Lá pelas quatro da
tarde, quando os índios voltaram, foram recebidos à bala. Chico Lúcio, um dos
atiradores, falou que eles mataram "para mais de 60 índios", segundo
depoimento publicado no jornal Porantim, prestado por Luís Chagas, em junho de
1979, em Manaus, à jornalista Conceição Derzi.
Os sobreviventes
Os poucos
sobreviventes, entre os quais o menino Karé, com seis anos de idade, e as
mulheres "Baru" e "Inté" se refugiaram no igarapé Joari,
afluente do Içuã. Em 1979, alertada pela denúncia do Porantim, a Polícia
Federal abriu inquérito de número 056 para apurar e identificar os responsáveis
pela chacina, que adquiriu contornos de genocídio. Derzi ficou no pé da Polícia
Federal, mas o inquérito acabou dando no que sempre dá nesses casos: em nada.
Anos depois, em matéria
publicada no Jornal do Brasil e no jornal A Crítica (24/01/93) o repórter
amazonense Orlando Faria conta que o ataque de uma onça pintada, numa noite de
lua cheia, em janeiro de 1992, decretou a extinção dos Juma, ao matar o índio
Karé, de 35 anos, o único homem em condição de reproduzir. Os Juma ficaram
reduzidos a três meninas de oito, dez e doze anos e a dois casais de velhos.
Quase na virada do
século, em 1998, a família Juma foi levada pela Funai para a aldeia Alto
Jamary, dos Uru-eu-wau-wau, onde as meninas se casaram com indivíduos dessa
etnia, mas manifestavam desejo de retornar ao seu território de origem. Em 2002
já estavam reduzidos a cinco indivíduos e em 2010 a apenas quatro.
Considerados por Helene
Clastres como "os teólogos da floresta" por haverem construído um
metadiscurso sobre sua própria religiosidade, os índios do grupo tupi-guarani
viviam em constantes migrações em busca da Terra Sem Males. Os seus cantos e
melodias entrecortados de frases não cantadas anunciavam a nova terra da
promissão, cujo acesso era facilitado pela dança, que tornava o corpo mais
leve.
As provações morais e
as longas peregrinações representavam o tempo necessário para uma lenta mutação
do espírito e do corpo, o que os tornava dignos e merecedores da Terra Sem
Males.
Os Jumas que
sobreviveram - nos conta Orlando Faria - passaram a criar pássaros de todos os
tipos para reencontrar seus parentes assassinados, pois acreditam que as aves
incorporaram os espíritos de seus entes queridos. Karé, o último dos Juma, pode
ser hoje um gavião rei, voando para a Terra Sem Males. Enquanto isso, nós
ficamos mais pobres. E impotentes. Quem acabou com os Juma não foi uma onça,
mas um bicho muito mais feroz, predador e perigoso.
P.S.- Pensei publicar
aqui uma versão da palestra que ministrei quinta-feira (10/04) no II Seminário
sobre interculturalidade organizado pelo Instituto Federal Catarinense (IFC) em
Camboriú. O tema da mesa - o diálogo das culturas ancestrais com as ciências e
as tecnologias - foi discutido por Adir
Casaro (UCDB), Vera Santos e Maicon Fontanive, sob coordenação de Michel
Goulart (IFC). Mudei de ideia. Reproduzo aqui versão atualizada de artigo
publicado em Manaus (1993) e depois em São Paulo pelo ISA - Instituto
Socioambiental (1996), só para poder formular algumas questões à Comissão da
Verdade, a nacional e a local:
- Cadê o processo 056
da Polícia Federal? O que foi apurado naquela ocasião? Por que foi arquivado?
Por que ninguém foi punido? Os criminosos se enquadram na autoanistia que se concederam
os torturadores?
* Jornalista
e historiador
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