Sujeito Zero (4)
* Por Sergio Vilas Boas
COM AGILIDADE AFOITA e um taxista
embarcado na aflição, Alma chegou o mais rápido que pôde à Tremont Street. No
hotel, embutiu os pertences de qualquer jeito. Cosméticos se espalharam, a mala
não fechou no primeiro chute. Ela parece ter uma energia super-resoluta – algo
meio masculino, me parece.
Conseguiu conectar-se ao seu mundo com o velho e
bom telefone fixo. Os números mais importantes - da mãe e das duas irmãs - não
responderam desde as primeiras tentativas. Enfim, localizou um dos vizinhos de
seu pai, João Vital, que, na melhor das intenções, acabou espetando uma agulha
sob as unhas de Alma.
Então
houve um internação hospitalar que durou cinco dias? Por que não me avisaram?
Para não me preocupar, como assim? João Vital garante que tentaram e não
conseguiram me localizar. “A confusão foi grande”, ele me disse ao telefone.
Vicente, o outro vizinho, amigo de Seu Edmundo,
foi quem testemunhou o primeiro comunicado médico. A revelação da radiografia
não podia ter sido mais cruel. Havia metástases nos dois pulmões, derrames
infecciosos nas vias respiratórias. Para a UTI, imediatamente, onde tentariam
drenar os derrames.
Além da nevasca, da angústia e tudo aquilo, Alma
precisou governar naquela noite uma série de percepções equivocadas, dela e dos
outros. De todos em relação a todos, dela em relação a si mesma. Aqui, no
Brasil, atrapalharam-se com o processo, e mais adiante compreendi que a causa
foram os afetos desencontrados e as tantas pessoas omissas, incluindo, claro, o
próprio Seu Edmundo.
Alma ligou para todas as companhias aéreas
e ferroviárias. Os vôos shuttle Boston-Newark daquela noite estavam ou
lotados ou cancelados, e as conexões com trens da Amtrak e suburbanos tampouco
coincidiam com a urgência do caso.
Garantiu o último assento em um MD-11
previsto para decolar à meia-noite de Newark, Nova Jersey, com destino ao Rio
de Janeiro. Mas tudo estava condicionado à sorte e às quatro horas
imprevisíveis de carro (supondo a velocidade de 80 quilômetros por hora -
astronômica, dadas as condições atmosféricas) até o Aeroporto Internacional de
Newark.
Entre tropeços e lágrimas, a lucidez dela
vacilou, sentimentos vertiginosos voltaram a aflorar. No pescoço havia uma
espécie de forca feita de cordas vocais entrelaçadas. Acabou tomando uma
atitude arriscada, mas que, na manhã seguinte, se revelaria um golpe de sorte
tremendo: Alma alugou um carro para ir de Boston a Newark e conseguir embarcar
no MD-11 da Continental Airlines à meia-noite.
Enquanto isso, a natureza insistia em precipitar
cristais de gelo suspensos, em brecar as ilusões de movimento dela. A duração
da ansiada viagem de encontro com a lápide florida de seu pai, dadas essas e
outras adversidades, era uma incógnita. Mas ela, contra todas as advertências,
acertou as contas na recepção e foi apanhar o compacto Hyundai Accent numa loja
da Hertz Rent-A-Car...
***
Duas semanas antes, Alma havia encontrado
o pai do lado de fora do portão da Fazenda Futura, um centro de recuperação de
dependentes químicos. Foi chamada - e ele teve sorte de a encontrarem - porque
Seu Edmundo estava cada vez mais queixoso de uma falta de ar implacável, que o
vinha impedindo de dormir, comer e até de raciocinar. Como havia parado de
fumar, acreditava-se em “efeito rebote”.
Seu Edmundo parara de fumar por
necessidade, não por convicção. Eram as regras. Para ser aceito na Futura, nem
uma gota de álcool (eis a razão da internação dele), nenhum cigarro a partir do
momento em que ultrapassasse o portão. As freiras eram rígidas também quanto às
visitas. Os pacientes só podiam se comunicar com familiares e amigos por carta.
Uma dura terapêutica disciplinar, mas pela qual não se pagava um centavo.
Alma é a única das três filhas a se
interessar por Seu Edmundo. As outras nunca se apegaram a ele nem fizeram
esforço porque o consideravam apagado, sem iniciativa e ainda por cima
tabagista e alcoólatra, dois fatores que poderiam livrá-lo da condição de
“vítima do sistema”.
Houve mesmo um período em que até os
colegas de botequim batiam a carteira dele. Mas não pretendo, agora ou adiante,
insistir na tecla de suas privações. Seria uma hostilidade com aqueles que
pensam estar se dando bem na vida. Ou será que alguém neste mundo está imune à
miserabilidade?
Alma assumira a responsabilidade pelo pai
espontaneamente. Ao que parece, uma atitude típica de mulher que sempre
abominou a exclusão e experimentou nos últimos dez anos mundos muito diferentes
entre si. Acredito piamente que ela era fascinada por Seu Edmundo. Mas nutriu,
como eu próprio, um pouco de pena dele.
Então, ela o viu se aproximar do portão da
Futura barbeado e mais magro. Abraçaram-se, desajeitados. Mesmo para ela, que
procurava demonstrar os mais nobres sentimentos e afetos, relacionar-se com o
pai era um tanto complicado. Primeiro que ele tinha um histórico de não
colaborar para o encaminhamento dos progressos. Segundo que ele não sabia se
comportar conforme o ambiente e o momento.
- Como está o tratamento, pai?
- Exigem trabalho e oração aqui.
O Fiat Uno Mille de Alma levantava poeira
rumo ao posto de saúde mais próximo, em Catas Altas, cidadezinha perdida no
mundo a cerca de 45 minutos da Fazenda Futura. Alma tentou ocupar os hiatos com
comentários e incentivos do tipo:
- Agüenta firme, pai, não pode abandonar o
tratamento a essa altura.
Ele já havia feito isso várias vezes, daí
a baixa credibilidade.
- Quero voltar pra casa, Alma. Me leva pra
casa.
Silêncio. E ela, consigo mesma: Fraco! Manhoso!. Depois de um pedido desses, falar sobre o que mais? Sobre
a saúde? A tosse, por exemplo?
- Faz quanto tempo que está tossindo
assim?
- Uns dois meses.
E Alma de novo consigo: Coitado, está se ferrando. Precisa de ajuda.
Por causa do feriado, véspera do terceiro
milênio, havia duas pessoas de plantão no posto de saúde, embora ausentes do
local. A médica estagiária tinha ido almoçar na casa do namorado, a mais ou
menos meia-hora de poeira dali, segundo a secretária do posto, encontrada por
acaso. Alma bateu pé, telefonou para a médica e conseguiu convencê-la a
comparecer.
Prosaica, a jovem auscultou Seu Edmundo,
mediu pressão arterial e examinou as amídalas.
- O senhor está com a respiração
embargada. Típico de quem pára de fumar repentinamente.
A jovem estagiária, sobre quem pouco se
sabe, não pediu nenhum exame minucioso. Nem mesmo um raio x de pulmão. Naquela
aldeia fantasma, em plena tarde de 31 de dezembro, o que adiantaria um pedido
de raio-x? Mas era obrigação dela. O pedido pesaria na consciência de Alma, que
certamente teria dado um jeito de levar seu pai aonde quer que houvesse um
aparelho de raio-x.
- O senhor está com bronquite tabágica.
Foi esse o diagnóstico da “médica
afetuosa”, que receitou aqueles expectorantes que aparecem em outdoors. Se
fosse em dia útil, numa clínica de cidade grande, com uma especialista mais
experimentada, a vida de Seu Edmundo podia ao menos ter sido prolongada, Alma
pensou. Ele não teria morrido duas semanas depois.
Ele tinha câncer em estágio avançado,
Alma. Você não entende?
Na hora de se despedir do pai na porta de
entrada da Fazenda Futura, Alma estava dividida e preocupada. Precisava tirá-lo dali, mas achei que não
devia. Queria mantê-lo ali, mas achei que era preciso levá-lo para casa. Eu
tinha de levá-lo e ao mesmo tempo mantê-lo ali. O nó da situação me apavorou.
Meu Deus: é só uma bronquite tabágica ou algo mais grave? É sofrimento ou mais
um artifício pra gente se apiedar dele e tudo ficar como está?
Ela empurrou a decisão para Seu Edmundo, que,
evidentemente, projetou-se para trás, agindo para que tudo ficasse como sempre:
igual. Mas antes de preferir entrar de novo na Futura, ele perguntou, orgulhoso
de si:
- Tá vendo aquele roseiral ali?
- Tô.
- Fui eu que plantei.
- Lindo, pai.
- Fiz tudo sozinho.
- Que legal!
- As freiras gostaram.
***
No dia seguinte (1º de janeiro de 2001) Seu
Edmundo abandonou por conta própria o tratamento que completava apenas dez
meses. Sacolejando em ônibus caquético, ele retornou à alugada casa de fundos
da Rua C, bairro Jardim Nova York, Belo Horizonte, seu endereço postal desde
julho de 1978, quando se separou de Inês e das filhas Alma, Ava e Clara.
* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas
da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de
“Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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