Dicionário amoroso do Recife - I
* Por
Urariano Mota
Na Rua do Bom Jesus
existe uma escultura de Antônio Maria. Não poucas vezes, andando pelo Recife,
paro diante da figura do cronista fundamental. Ali a vontade que me assalta é
de chamar as pessoas que passam e com elas conversar sobre ele. Começaria por
um “você sabe quem é?”, em lugar de um “você sabe quem foi”. No entanto, jamais
poderia imaginar uma conversa involuntária que tive sobre Antônio Maria,
impossível de reprimir.
Foi numa sexta-feira,
por volta das 11 da manhã, quando eu caminhava pela Rua do Bom Jesus somente
pelo prazer de voltar àquela rua, à qual tantas vezes fui na adolescência.
Súbito, ao subir a calçada, eis que noto um aglomerado de senhoras e senhores,
em pequeno tumulto ao redor da estátua de Antônio Maria. O que é isso? me
pergunto. E chego mais perto, como se de passagem eu parasse de repente. Então
pude ver turistas, o que se notava pelas cores das roupas e vermelhão recente
nas peles abrasadas. E por um certo estar muito à vontade também. As senhoras,
como jamais fariam as nativas do Recife em público, as senhoras sentavam-se no
colo da estátua do cronista, agitavam-se nos quadris e davam gritinhos. Antônio
Maria não despregava um sorriso no concreto, enquanto as demais senhoras
gritavam também e os risonhos senhores aplaudiam. Eu já deixava a cena como um
intruso na festa, quando a um sinal o grupo se recompôs entre gritinhos que
morriam. Destacado, passou então a falar um jovem, que se vestia como um
recifense fantasiado de turista no Recife. Camisa florida, boné, óculos
escuros, tênis cintilante. Era o guia. Olhem, explicações a turistas em
excursão, para os ouvidos de um nativo, são tediosas.
Mas a fala do jovem
guia tinha colorido, ele falava com exemplos de pedagogia de cursinho para
vestibulares. Sabem? aquelas aulas agradáveis que simplificam o que não pode
ser simplificado. Curioso, resolvi ficar, e pude ouvir:
- Este senhor é meio
gordinho, não é? Uma graça. Pois saibam que este homem é autor do primeiro
frevo composto em Pernambuco.
Eu fiquei parado,
estático, hipnotizado e tonto. O jovem guia continuava a falar as coisas mais
inverossímeis e absurdas sobre Antônio Maria, que eram recebidas em altíssimo
grau de aprovação por todos. Nem passava pela cabeça de ninguém que o frevo
tinha mais de 100 anos – de registro em jornal -, e portanto Antônio Maria não
poderia compor música nos primeiros anos do século XX. Pois Maria, apesar de
genial, também tinha o direito de nascer, depois do primeiro frevo de
Pernambuco. Na hora, essas razões não me acudiam, porque ninguém pesquisa em
livros, artigos e anotações no instante em que fala Apenas me socorri da
memória, que me disse: “peraí, Antônio Maria não compôs Vassourinhas nem
Borboleta não é ave”. E fiz sinal, educado, ao guia professor de aulão para
vestibulares. Ele surpreendido me concedeu a palavra, talvez por não saber o
que viria de um nativo vestido de recifense. E falei, entre gaguejos e pausas,
procurando clareza à medida que seguia a linha da lembrança:
- Acho que houve um
pequeno engano. Antônio Maria não é autor do primeiro frevo em Pernambuco. Ele
é autor do Frevo n◦. 1 do Recife.
- Ah, ele é autor do
primeiro frevo do Recife. Não é de Pernambuco.
- Não, ele é autor do
frevo número 1 do Recife. Esse é o nome. É o número 1 de Antônio Maria, para
ele que fez, entende?
- Ah...
E me senti então
estimulado a continuar a conversa, porque grande era o desconhecimento do guia
e guiados na Rua do Bom Jesus.
- Antônio Maria não é
autor só de frevos. Ele compôs sucessos mundiais da música popular brasileira.
Vocês já ouviram “Ninguém me ama”? Pois é, Nat King Cole gravou a música e
virou sucesso em todo o mundo. Não era pra menos, não é? Manhã de Carnaval – já
ouviram falar? – pois, é outra canção em que ele botou letra. Mas além de
compositor, Antônio Maria foi, é um cronista dos melhores do Brasil de todos os
tempos. Sabem que diz isso? É Luis Fernando Veríssimo quem diz.
“Bah!”, ouvi. Confesso
que tive vontade de falar mais, de contar o amor e desengano de Antônio Maria
por Danuza Leão, de transmitir suas frases espirituosas, e, acima de tudo,
falar daquelas crônicas imortais, escritas com os dedos transformados em
coração. Uma coisa violenta e terna de pernambucano, que não põe meio termo.
Mas aí era faltar à educação e misericórdia para com o guia. Puxei brusco um
freio de mão e parei. O guia então, por gentileza, puxou aplausos. Acho que ele
fez mais isso por gentileza ritual, algo assim como o costume recente de
aplaudir de pé um show medíocre. O certo é que agradeci e sai andando, confuso
e perturbado, o resto da rua.
Mas o que não falei
ali, tentarei falar nestas linhas, atento aos limites do espaço.
O cronista Antônio
Maria, falecido em 15/10/1964, foi, é, um homem que todos deveriam ter como um
companheiro de jornada e de leitura permanente. Não fosse ele o compositor de
canções eternas como Frevo número 1, como Ninguém me ama, Manhã de carnaval,
Menino grande, Suas mãos, O amor e a rosa, Valsa de uma cidade, não fosse o
autor de um grito, "nunca mais vou fazer o que o meu coração pedir, nunca
mais ouvir o que o meu coração mandar", não fosse ele o autor de letras
que são a ternura em quintessência, ainda assim ele deveria ser lido todos os
dias, como uma lição e dever para educar sensibilidades.
Numa coluna de revistas
de curiosidades e fofocas, poderia ser dito que ele foi marido de Danuza Leão,
roubada por ele do seu patrão, o grande jornalista Samuel Wainer. E que, ao
receber o troco mais adiante, ficou só, morreu de fossa e de amor em uma
madrugada três e cinco, talvez. Que feio, grande e gordo, conquistava mulheres
pelo poder da lábia e da inteligência. Que foi ameaçado por Sérgio Porto (sim,
o Stanislaw), por ter servido de conselheiro sentimental, de modo muito
interessado, a uma namorada de Sérgio Stanislaw Ponte Preta. E que ao se
apresentar como Carlos Heitor Cony a uma madame, levou-a para a cama, para
depois contar ao verdadeiro Heitor, “Cony, você broxou”.
Mas ele poderia ter
sido lembrado, reverenciado, e lido principalmente por suas crônicas, que estão
entre as maiores e melhores já escritas no Brasil. Suas crônicas, quase digo,
suas mãos, misturavam humor, crueldade e lirismo, a depender dos dias e da
vida, que não eram iguais, para ele ou para ninguém. Como neste perfil arguto
de Aracy de Almeida:
"Não é bonita,
sabe disso e não luta contra isso. Não usa, no rosto, baton, rouge ou qualquer
coisa, que não seja água e sabão. Ultimamente corta o cabelo de um jeito que a
torna muito parecida com Castro Alves... Faz de cada música um caso pessoal e
entrega-se às canções do seu repertório como quem se dá um destino. Não sabe
chorar e não se lembra de quando chorou pela última vez. Mas a quota de
amargura que traz no coração, extravasa nos versos tristes de Noel: `Quem é que
já sofreu mais do que eu?/ Quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi o prazer
que Deus me deu´... e vai por aí, sem saber para onde, ao frio da noite, na
espera de cada sol, quando o sono chega, dá-lhe a mão e a leva para casa".
Ou aqui, dias antes de
morrer:
“Há poucos minutos, em
meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de
escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria
desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente
pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é
burlesca...
Só há uma vantagem na
solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para
quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida”.
Ou nestas considerações
sobre o sono:
"** Ah, que
intensos ciúmes, no passado e no futuro, sobre a nudez da amada que dorme! Só
você a viu, só você a verá assim tão bela!
** Nas mulheres que
dormem vestidas há sempre, por menor que seja, um sentimento de desconfiança.
** A amada tem sob os
cílios a sombra suave das nuvens.
** Seu sossego é o de
quem vai ser flor, após o último vício e a última esperança.
** Um homem e uma
mulher jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos,
para que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta.
** Mas, já que é isso
impossível, que ao menos chova, a noite inteira, sobre os telhados dos
amantes".
E finalmente aqui, ao
lembrar o carnaval na sua infância:
“Muitas vezes, de
madrugada, o menino acordava com o clarim e as vozes de um bloco. Eles estavam
voltando. O canto que eles entoavam se chamava ‘de regresso’. Não sei de
lembrança que me comova tão profundamente. Não sei de vontade igual a esta que
estou sentindo, de ser o menino que acordava de madrugada, com as vozes de
metais e as vozes humanas daquele Carnaval liricamente subversivo”.
A boa memória conta que
Antônio Maria, ao narrar uma partida de futebol, exclamava no rádio quando via
um jogador chutar fora do gol: “Bola no fotógrafo!”. Para a barbárie ou
ignorância que não o lembra, vale dizer: bola no fotógrafo.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”,
cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e “Dicionário amoroso de
Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”,
uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
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