A gratidão da viúva
* Por
Marco Albertim
As núpcias do professor
Cambeba não tiveram a trilha sonora própria das noites insones de arrulhos e
queixumes. Os dois, Cambeba e a viúva do feitor, olharam-se quase perplexos
depois de pendurarem as roupas no cabide da parede.
Não apagaram a luz no
pequeno abajur lilás, fixo no teto da mesma cor; também as quatro paredes do
quarto exibiam o arroxeado lilás, semelhante ao terno de uso costumeiro do
feitor. Cambeba e a viúva se atracaram antes de fazerem uso da cama de caviúna,
trazida do engenho pelo feitor, depois de abrigar a ancestralidade da família.
Atracaram-se para se vingar da tardança do casamento. Desconfiados de que o
cansaço poderia frustrar os desígnios da vindita, atiraram-se na cama sem medo
de que a caviúna, também a caviúna, soltasse um gemido de vingança.
Toda Goiana dormiu
depois de sussurrar o casamento temporão de Arnaldo Cambeba com Eulália Rabelo.
Os dois, devorando-se sobre a cambraia do lençol, rugiram protegidos pela
alvenaria compacta separando as casas vizinhas, conjugadas. Os sussurros mais
próximos dali, na rua do Amparo, juntaram-se ao frenesi ruidoso do casal, dando
conta de uma trilha sonora prenhe de promessas e agouros.
Cambeba foi o primeiro
a se levantar da cama, ainda zonzo dos espasmos da viúva em seus ouvidos. Não
creu-se de todo num lugar seu, ou dado a si pela sorte que há seis anos fora
injusta com ele, e agora se mostrava generosa. Olhou para o relógio no pulso;
os ponteiros indiferentes apontavam para as cinco horas e quinze minutos, mesmo
horário em que, na semana anterior, na estreiteza de sua cama de solteiro,
conjeturara sobre a morte prematura do feitor, e seu casamento apressado com a
viúva respirando aliviada a alforria enfim obtida.
Assim, Cambeba olhou-se
no espelho ao lado da cama e viu o próprio rosto refletido; o bigode ralo, no
entanto, deu a impressão de se encrespar ou de ter na ponta de cada fio, um
estilete pronto a furar os olhos de quem se pusesse a espreitá-lo. Desviou os
olhos do espelho, para não se crer observado como fora no cemitério, pela
carantonha espectral do feitor. Eu sou materialista, grunhiu sem supor que a
viúva sua mulher, já o espreitava com a mesma desconfiança de que o falecido
não se dera por satisfeito por ter lhe concedido o status de viúva, com direito
a papel passado pelo cartório.
Outra vez de frente ao
espelho, o bigode de Arnaldo Cambeba engrossou, quase escondendo os orifícios
das narinas. O espelho mostrou a perplexidade dos olhos; a boca, em vez de
mostrar o esgar do espanto, contraiu-se entre um riso mal escapado e a
severidade convulsa. Os mesmos traços do feitor Múcio Rabelo, quando
confrontado com a pregação de um levante camponês, como único meio para pôr fim
ao mando dos senhores de engenho.
- Volte para a cama – a
viúva chamou-o.
- Seu marido usava
muito este espelho?
- Sempre que ia para o
engenho.
- Mas na missa, ele
tinha os cabelos com uma ou duas mechas na testa.
- Ele não gostava do
padre Hercílio. Dizia que o padre Hercílio tinha parte com subversivos.
- Seu marido era tão
fascista que fechava os ouvidos para não ouvir o sermão de padre Hercílio no
púlpito. Temia que viesse dali um discurso incendioso.
Eulália Rabelo vivera
seis anos sorvendo a respiração azeda, de tabacaria, que o feitor sempre
deixava escapar na voz e no sono turbulento. Inda que contrariando seus
desígnios de quando fora solteira e, às escondidas dos pais, fomentando em
Cambeba as chances de um casamento impossível, deixara-se moldar pelos hábitos
de fanfarrice do marido. Não convinha, portanto, esconder dos convivas da casa,
a solenidade do casamento com o professor Arnaldo Cambeba.
Assim, convidara para a
cerimônia, o juiz Herculano Santoro, tão magro quanto a preguiça de emitir um
mandado de soltura, ainda que o preso já tivesse cumprido a pena.O promotor
Charles Droit, de rosto incendido feito um alemão nazista. O tenente Câmara,
chefe do Tiro de Guerra, zeloso da cartilha do 1º de abril. O delegado de
polícia, Mantilha Cedrado, tão calado quanto a solene indiferença aos maus
tratos infligidos aos presos da cadeia. E o prefeito Miguel Parelha, mantenedor
de mais de uma dezena de mulheres, cujos filhos tinham as despesas pagas pelo pai,
inda que não fossem agraciados pelos bens hereditários, porque o velho tinha o
cuidado de pôr os imóveis em nome dos netos de seu casamento principal.
Convidados e a família, todos com a pompa tão ao gosto do finado Múcio Rabelo.
Arnaldo Cambeba nada dissera,
sujeito ao mando e às despesas por conta da herança na conta bancária da viúva.
Os convidados voltaram
à convivência na casa onde o feitor se sentara na cabeceira da mesa de
refeições.
No Dia de Finados,
Cambeba foi ao cemitério ao lado da viúva. Eulália Rabelo, com severidade de
matrona, depôs sob a laje do túmulo do finado marido, uma coroa de flores. No
meio, uma faixa escrita – A gratidão de Eulália e Cambeba.
O rosto austero do
finado tornou-se frequente no espelho do quarto, sempre que Cambeba se
espreitava conjeturando sobre o futuro com a viúva do feitor.
Não demorou e ele viu,
na parede ao fundo da cabeceira da mesa de refeições, o retrato de Múcio Rabelo
na moldura antiga, sem hesitar em mostrar os fios do bigode.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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