Na garupa de São Jorge
* Por Daniel Santos
Passara já dos doze anos e estava
no ponto – diziam os garotos da rua que, quase toda noite, e cada vez com maior
freqüência, vinham até a praça onde ela residia entre caixas de papelão,
jornais e sacos plásticos.
Acorriam também os piedosos com
roupas e alimentos, senhoras muito educadas do governo e padres de batina
preta. Pois foi um deles quem lhe mostrou a imagem de São Jorge a cavalo e
chapéu de plumas.
Ela se encantou pelo santo com
arrebatamento de noviça, a ponto de procurá-lo em todos os lugares. Sabia que o
tal habitava a Lua, onde combatia o dragão, e debruçou-se no lago da praça à
espera da sua visita.
Luar após luar, aguardou que ele
surgisse, mas havia sempre nuvens encardindo o céu com uma escumilha de
presságios. Enfim, na noite em que os garotos deram o bote, ela se atirou às águas e o santo a
acudiu.
Um dos pivetes alcançou-a por
trás, mas a menina nem sentiu, que mais lhe fascinava a miragem: São Jorge
emergiu sobranceiro, colocou-a na garupa e debandaram para sempre juntos,
cavalgando, cavalgando ...
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de
"O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio
de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha
imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma
gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma
negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de
conclusão, em 2001.
O devaneio possível no momento exato. Um conto entre o dolorido e o encantamento.
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