Cambeba e a viúva
* Por
Marco Albertim
O Baldo do Rio não é
mais um baldo. O rio continua comprido, estreito. As águas que despeja na
largura do leito, são tão ralas quanto escassas; têm o mesmo acento gelatinoso,
e o cheiro azedado da calda que a usina despeja no período da moagem da cana.
Com o fim das enchentes naturais, vindas da foz do rio, no meio do leito fez-se
nua uma crosta de terra cinzenta; logo uma vegetação sem cor definida cresceu.
Nas paredes de pedras,
de um lado e de outro, a mesma vegetação cobriu a simetria da mais que
centenária construção; resultou dali o traço melancólico de que o outrora
próspero porto de Goiana, move-se dos dois lados, espremendo o espaço quase
sumido das águas.
Foi ali que o professor
Cambeba resolveu descansar; não na beira do canal, vizinho à ponte de acesso ao
canavial da usina, mas num banco de cimento estropiado, com os ferros
enferrujados à mostra. Conseguira escrever na lápide do feitor Múcio Rabelo –
Aqui jaz um fascista. – Inda que tenha distinguido, entre um tronco e outro das
acácias, e com a ajuda de um insidioso raio dando sinais de chuva, o rosto
mortiço do feitor. A tinta usada, spray cor preta, dando conta das intenções
subversivas do autor da peça.
Arnaldo Cambeba
sentou-se no banco onde, nos meses que se seguiram ao 1º de abril de 1964, vira
corpos de camponeses boiando feito troncos de cortiça sem a casca; as barrigas
inchadas, os rostos careteiros, com ritos de desafio à simetria móvel das
nuvens desdenhosas.
Atrás do banco, olhando
para a praça com palmeiras imperiais e um capim ralo, crescido, desigual, o
casario conjugado dava conta de armazéns onde o açúcar das duas usinas era
estocado em sacos de tecido de algodão grosso. O feitor Múcio Rabelo também
tinha o seu, sem se desfazer das botas de cano alto, com as pernas da calça no
interior das botas.
- Sei o que você está
pensando...
Ele olhou para trás,
viu a silhueta robusta de Eulália Rabelo ainda com vestido de luto, luto
aliviado, insinuando uma perda recente na família.
- Venha tomar um café
comigo – convidou ela.
Ela sentou-se na
poltrona de recosto móvel, em frente ao birô onde seu marido monitorava o livro
de entradas e saídas dos sacos de açúcar.
- Você não foi para a
missa de sétimo dia do falecido meu marido.
- Você me deixou para
casar com ele. O que o povo iria dizer de mim?
- Iriam tratá-lo com respeito...
um homem sem mágoas.
Arnaldo Cambeba tivera
com o feitor um convívio marcado por diferenças, desde o tempo em que, juntos,
estudaram no seminário.
- Por que você preferiu
casar com ele?
- Não tive outra
escolha. O meu pai também era feitor de engenho, de dois engenhos. Exigiu que
eu me casasse com Múcio. Disse para mim assim que saí do colégio das freiras.
Ele olhou para as
paredes brancas, mofadas pelo cheiro acre do açúcar nos sacos. Viu na parede
dos fundos, atrás de Eulália, o cabide onde o feitor depunha o chapéu de feltro
verde, queimado feito o massapé seco na entressafra das canas; o rebenque de
couro grosso, que o feitor não era homem de esconder os desígnios de violência.
- Venha comigo – ele se
levantou e segurou numa das mãos da viúva. – Ordene a seu motorista que nos
leve ao cemitério.
Com o sol ardendo na
pele, os dois se puseram em frente à lápide do feitor. Cambeba não deixou de
olhar para os galhos das acácias; com o olhar soberbo e a recuperação da
vaidade de ter descoberto no materialismo a explicação para a sujeição dos
homens à igreja e às usinas.
- Eu escrevi isso! –
disse ele apontando para o mármore branco.
- Desconfiei que você
faria isso. Vamos para casa. Você vai dormir. Mais tarde venha jantar comigo.
- Na mesma mesa do
feitor?
- Na mesma cadeira onde
o feitor presidiu os jantares que oferecia aos amigos.
Arnaldo Cambeba vestiu
o paletó de linho, olhando-se no espelho, suspeitando estar parecido com o
feitor em noite de solenidade. Entrou na casa de Eulália Rabelo, seguido pelo
empregado que o feitor trouxera das terras de seu engenho. A mesa estava posta.
Eulália, sentada na cabeceira, e na outra o padre Hercílio.
- Sente-se aqui,
Arnaldo.
Ele sentou-se sem tirar
o paletó, para não parecer um usurpador.
- Arnaldo. – ela fitou
Cambeba bem no fundo dos olhos – O padre Hercílio vai oficiar o nosso
casamento.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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