O outono de Gabriel García Márquez
* Por
Urariano Mota
Faz um ano li nos
jornais um atentado grave para todos que amam a criação e a literatura: o gênio
essencial de nome Gabriel García Márquez estava perdendo a memória. De lá para
cá, por caridade ou leviano movimento do noticiário, ninguém mais falou. É como
se perdêssemos também a memória sobre a memória do genial mestre do romance.
Razão por que retomo aqui este breve lapso.
Quando se espalhou como
peste a notícia, o anúncio da demência veio de Plínio Apuleyo Mendoza, amigo da
juventude de García Márquez, sobre quem Plínio publicou o bom livro Cheiro de
Goiaba. Assim Plínio Apuleyo Mendoza anunciou a desgraça:
“No dia em que ele
completou 85 anos (6 de março), liguei para dar parabéns, mas quem falou comigo
foi Mercedes, sua esposa. Ela preferiu assim porque ele não se lembrava de mim…
Mendoza também contou
que o filho do Márquez, Rodrigo – que é seu afilhado –, revelou a ele que o pai
precisa ver as pessoas "porque senão, pela voz, não sabe quem está
falando". Nas últimas vezes em que conversamos pessoalmente, na Cidade do
México, ele repetiu várias vezes: "Como anda você? O que tem feito? Quando
volta de Paris?" Muitos amigos comuns com quem falei sobre o assunto
disseram que com eles aconteceu a mesma coisa. Gabo fez as mesmas perguntas.
Existe a suspeita de que ele tenha algumas fórmulas. Se não reconhece alguém,
não pergunta ‘quem é você?’. Prefere fazer perguntas genéricas”.
Essa notícia, em um ano
carregada de velhice precoce, além do puro registro dos jornais, que anunciam
desastres, explosões, esquartejamentos, queima de pessoas e livros entre um
anúncio comercial e outro, mereceria um ensaio sobre as pessoas que são tão
imensas que esquecemos a sua materialidade. As pessoas são de carne, ainda que
tão queridas. Mas como esta coluna é sempre um ensaio de algo melhor que
poderia ser escrito, quem sabe, um dia mais adiante, prefiro lembrar que essa
morte anunciada, da memória no maior escritor vivo, já se encontrava na
biografia Gabriel García Márquez: uma vida, de Gerald Martin, publicada no
Brasil em 2010. Dela ontem à noite pude copiar, com a respiração tensa:
“Gabo não podia mais
dar respostas claras e acuradas a perguntas diretas e inesperadas, e era capaz
de esquecer o que acabara de dizer cinco minutos antes. Eu não era especialista
sobre as diferentes formas e progressões da perda da memória, mas minha
impressão foi de que sua condição progredia com bastante constância. Era duro
ver um homem que havia feito da memória o foco central de toda a sua existência
assediado por tal infortúnio. Gabo era “um recordador profissional”, como
sempre se chamou…
Com dicas adequadas
podia lembrar-se de mais coisas do passado remoto – embora nem sempre os
títulos de suas obras – e travar uma conversa razoavelmente normal e até
bem-humorada. Mas sua memória imediata estava fragilizada, e Gabo se mostrava
claramente angustiado com isso e sobre a fase em que parecia ter entrado.
Depois que conversamos sobre seu trabalho e seus planos por algum tempo,
declarou que não tinha certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase
melancólico: ‘Escrevi bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar
frustradas, e não podem esperar mais nada de mim, não é?’
Estávamos sentados em
imensas poltronas azuis, numa saleta íntima do hotel, de onde se via o anel
rodoviário do sul da Cidade do México. Lá fora estava o século XXI, voando.
Oito pistas de tráfego incessante.
Ele me olhou e disse:
– Sabe, algumas vezes
fico deprimido.
– Como? Você, Gabo,
depois de tudo que realizou? Não acredito. Por quê?
Ele gesticulou para o
mundo além da janela – a grande artéria de tráfego intenso, a intensidade
silenciosa de todas aquelas pessoas comuns vivendo a vida num mundo que não era
mais seu –, depois voltou o olhar para mim e murmurou:
– Porque percebo que
tudo isso está chegando ao fim”.
Dizer o quê, escrever o
quê sobre a última notícia que veio tarde, desprezada um ano depois, dizer o
que agora? Aquele anúncio veio com um atestado semelhante à verdade, porque
repórteres copiam os fatos. O que é que podemos fazer diante da sentença, que
não admite recurso, desse tribunal da vida? Gabriel García Márquez, em toda
nossa juventude, nos deu conforto, humor e um estado de graça para suportar o
risco da morte. Lá na pensão, em atividade clandestina, a sua literatura era
melhor que cinema, viajar ou beber cerveja.
Então voltemos a seu
livro máximo. Em Cem anos de solidão ele escreveu um dia e para sempre: “El
mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre, y para
mencionarlas había que señalarlas con el dedo”.
Assim foi, assim é.
Penso que o escritor na sua memória ao fim, mesmo que esquecido em seu canto um
ano depois, aprofunda todos os días a sua volta ao princípio do mundo.
Obs.:
Este texto foi publicado, em 28 de julho de 2013, no portal Vermelho. Gabriel
Garcia Marquez faleceu ontem, aos 87 anos, na Cidade do México.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
A longevidade nos trouxe o pesadelo da falta de memória, o que tem amedrontado a muitos. Beleza de homenagem para quem merece todas as nossas deferências.
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