Natural é passar por cima, pisar, esmagar
* Por
Mara Narciso
Sou uma mulher de cor
parda, 1m 59 cm, 50 kg, e 58 anos. Sou de estilo simples, vestindo-me de calça
jeans e camiseta. Ninguém dá nada por mim, já me disseram na cara. Sou aquela
pessoa opaca, que, pela minha aparência bem tratada, porém singela, costumo não
ser notada nas repartições. O comum é o atendente falar indiferente comigo, ou
com ar de desdém. Sou apagada, invisível, facilmente ignorada. Por muito pouco
poderei receber um tiro no peito ao me aproximar de uma multidão, por
curiosidade (coisa que não costumo fazer). Por quase nada poderia, na
sequência, ser jogada no porta-malas de um carro e este, com a porta
displicentemente largada aberta, arrastar-me por 350 m, deixando no asfalto
minhas vísceras rasgadas, magras carnes esmigalhadas, que já não seriam de uma
pessoa de aparência pobre, mas de um cadáver pobre.
Eu posso estar passando
numa avenida, ao meio-dia, numa cidade de médio porte, na qual moro, chegando
numa outra avenida mais movimentada. Vir dirigindo meu carrinho vermelho, com
meu filho no banco do carona, levando uma feira e por isso mesmo, devagar. A
esquina não tem sinal de trânsito. Duas avenidas se cruzam. É hora do rush. Vou
levar a feira, almoçar e voltar ao trabalho, pois, preciso continuar. Tenho
altíssimos e desvairados impostos a pagar, inclusive sobre a minha miserável
aposentadoria. Uma senhora sai da sua garagem, com seu belo carro importado de
150 mil reais, único da cidade, fico logo sabendo, e colide sua frente com o
meu, no meio da linha de rolagem, batendo do meio do meu carro para a traseira.
Tive de enfrentar toda a sorte de pressão, arrogância e demonstração de poder.
Minha resposta? Não sou ninguém. As minhas posses são a fraqueza dos meus
braços. Mas, depois do jogo de cena, e do BO na presença do advogado da senhora
que me abalroou, seu seguro total pagará pelo conserto do meu carro, que também
tem seguro total. Recebi carro reserva para terceiro por sete dias, e na
sequência aluguei um carro em contratos picados, devido à incerteza de quando o
meu carro ficaria pronto, o que demorou 40 dias, com os devidos contratos
feitos e atualizados, por preços nada módicos. Gastei quase 3 mil reais de
aluguel. Fora o stress que não posso calcular em espécie.
Isso não foi tudo. Era
o dia 18 de março quando recebo no trabalho, durante a execução de uma consulta
médica, um telefonema de cinema. Sem nem ouvir um bom dia, escuto:
- Você tinha de
entregar o carro no dia oito, e não entregou. Como explica isso? - gritava a
funcionária de forma ameaçadora.
- Entreguei no prazo
combinado e fiz um novo contrato. Estou com outro carro que vou entregar no dia
20. Já paguei adiantado os sete dias, e com mais sete avisei estar tudo certo.
O novo contrato continua.
- Outro carro? Qual é a
placa?
- Falei as letras e os
números.
- Mas não é assim não –
disse a moça de forma irônica e provocadora - Após sete dias tem de trazer o
carro e comprar mais diárias. Você tem de vir aqui agora.
- Não posso. Meu
cliente está olhando para minha cara agora.
- Não acha tempo para
vir aqui? Manda seu filho (ela sabia que eu tinha um filho).
- Ele não dirige.
- Passa pelo menos o
número do cartão de crédito, para eu fazer a cobrança.
- Eu não paguei com
cartão de crédito. Paguei com cheque.
- Não, não é assim
não!!! Nós não trabalhamos com cheque não!!! - disse debochada.
- Pois trabalharam. Eu
paguei com cheque.
- Tem de vir à loja com
o carro, pagar a semana para dar continuidade ao aluguel.
- Eu fiz o contrato com
a funcionária Luana, e pelo combinado não é preciso levar o carro aí. Fiz um
contrato, fiz um negócio, não foi ajeito não. Afinal, quem manda aí?
- Você tem até as 21 h
para vir aqui ou as 23 h no aeroporto.
- Não irei aí hoje, em
nenhuma hipótese, apenas no dia 20, conforme contratado.
Mas na loja de celular
foi pior. Comprei o celular mais caro, Motorola Fórmula 1, pois tinha bônus
sobrando, embora nem quisesse aquilo. Fiz o negócio porque o velho analógico
quebrou uma das teclas. A jóia da tecnologia recebeu, mas regurgitou a agenda
nova, de mais de 500 números de telefone, por incompatibilidade de linguagens.
Deduzi depois. Tive de fazer acampamento junto com meu filho na tal loja por
uma interminável semana, inclusive fila no sol. Quando fui pela terceira vez,
uma das atendentes, que me disseram, poderia resolver o caso, me recebeu com
voz cortante, talvez pela minha idade e possível dificuldade em aprender seus
ensinamentos. Com a minha insistência para resolver o problema e o meu pedido
de calma a ela que falava alto, levantou-se e me deixou sozinha. Uma infâmia.
O maior espanto veio
quando constatei que ela era a funcionária do mês – Keila, aquela que faz a
diferença. Inacreditável. Recebe prêmios para maltratar o cliente que comprou
um produto caro, que eles não sabem fazer funcionar. Tive de conviver horas por
dia por vários dias com esses funcionários, até que uma delas, suprassumo da
tecnologia tentou dar um basta à pendenga. Resolveu? Não. A agenda tornou a
sumir. Quando eu me dispus a gastar o Carnaval, passando manualmente a agenda,
esta ficou. Fui humilhada após fazer uma compra cara, e adquirir um plano de
mais de R$200,00 por mês. Muito desgaste para enfrentar maus funcionários. As
empresas? Uma acha e a outra não morreu.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Complementando: Em resumo, a grande questão nem é o racismo, muito menos as minhas lamúrias por falta de sorte. O cerne do tema é a maneira humilhante a que são submetidas as pessoas de aparência pobre, ou tímidas, ou de poucas palavras. O comportamento autoritário, de desprezo, é tão encontradiço, que pode ser analisado como um câncer social, uma envergonha da nação, tal qual a corrupção. Quem deveria se envergonhar mais deveriam ser os atores que espezinham pessoas de visual humilde, e que aparentemente não lhes podem trazer nenhum benefício. Uma calamidade.
ResponderExcluirMara, seus dois relatos espelham a realidade e as humilhações de muita gente. Eu diria que de quase todo mundo nesse país... Um grande abraço!
ResponderExcluirIsso acontece com as que tem presença também!!!
ResponderExcluirAbração!
Obrigada amigos pela atenção da leitura e a gentileza do comentário.
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