“Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento”
(Caetano Veloso)
* Por
Mara Narciso
“Seu amor e uma cabana”
seriam suficientes para ser feliz. Aqueles que se aposentam falam na volta às
origens, em comprar uma terrinha e ir morar no campo. Os poetas não param de
cantar a vida simples como no roque rural Zé Rodrix e Tavito imortalizado por
Elis Regina que diz: “Eu quero uma casa no campo/ Do tamanho ideal/ pau-a-pique
e sapé/ Onde eu possa plantar meus amigos/ Meus discos e livros/ E nada mais”.
Os citadinos sentem inveja dos “carneiros e cabras pastando solenes no meu
jardim” e de como ter uma vida simples parece bom, fazendo contraponto ao verbo
mais empregado na cidade: correr. Mas não o correr para se exercitar, mas o
exercer a pressa sem sentido, sem rumo, em busca do vazio existencial.
Na década de 1960/70 o
mundo assistia ao modo de vida hippie, no qual a pessoa se desligava dos
valores consumistas. Andavam em grupos, não cortavam o cabelo e a barba, não
cultivavam hábitos de higiene, usavam roupas velhas e rasgadas e tinham poucos
pertences, levando tudo numa mochila. Era o tempo da vida nas comunidades em que
tudo era de todos. A paz e o amor eram a bandeira, além de desbancar os valores
paternos. Cultuavam a liberdade no pensamento e no sexo, além da fome de
cultura, com influência oriental. O movimento deixou sementes, ficando a ilusão
de que é possível ter uma vida desprendida.
Vemos-nos agarrados a
centenas de compromissos, amarrados pelo pescoço a obrigações imaginárias
contra as quais não brigamos. Quem não está com os olhos arregalados, coração
acelerado, numa permanente pressa, é de algum outro mundo, não desse. São
montes de cartões e senhas. Conexão 24 horas e urgência em fazer coisas
inúteis. Contraditoriamente, permanece o discurso de uma vida descomplicada.
Ambiguidade assolada
pela mentira. Que descomplicar que nada! Queremos sim a escravidão funesta, que
nos tira a saúde mental. Relaxar, meditar, música, conversar, quem tem tempo
para isso? Com tantas mensagens para responder, atualizações para checar,
downloads para fazer. Somos seres urbanos cheios de necessidades que não existiam
até anteontem.
Isso me assustou há
dois dias. Para ficar fora de casa por 27 horas, precisei de mais de uma hora
para arrumar uma valise de viagem com um pijama e duas mudas de roupa
(possibilidade de mudança no tempo climático) e os apetrechos que nos impomos
carregar. Por ser uma pessoa de hábitos simples e vestimenta no estilo jeans e
camiseta, assustou-me o longo detalhamento da minha bagagem. E até gerou certa
polêmica na partida, quando no carro, toquei no assunto.
Fomos prestigiar o
lançamento do livro “Raymundo Colares e o fogo alterante da criação”, de
Felicidade Patrocínio, em Grão Mogol, que dista 150 km de Montes Claros. No
carro, junto com a autora do livro, mais duas amigas, Adelaide Godinho e
Geralda Magela Sena, além do motorista Elias, falei da minha surpresa ao
constatar como acabamos por nos tornar servos de nós mesmos e de rotinas
massacrantes que nos impomos. Mencionei os remédios de uso contínuo (colesterol
e angina do peito), e também da possibilidade de passar mal e precisar de
outros medicamentos, então os carregava comigo. Embora criticada, como se
quisesse adoecer, não acho sensato deixar os remédios em casa, sabendo que já
estive em situação de precisar usá-los.
As questões de higiene
passam longe da sensatez. Como seres urbanos ao extremo, não basta um pijama,
uma escova de dentes e uma roupa íntima. Os anexos são múltiplos potes,
bisnagas, vidrinhos, caixinhas, embalagens de muitos formatos, bolsinhas,
apetrechos incontáveis, de todas as consistências, que vão enchendo as
repartições por todos os lados. Levei apenas um chinelo, e o sapato que usaria
na solenidade foi nos pés. Não uso perfume e nem pente, e ainda assim devo ter
carregado comigo mais de dez quilos de coisas.
Lá é serra e esfria à noite. Levei apenas um casaquinho leve e cheguei a
sentir frio. O pijama foi curto, para ocupar menos espaço, e o fato de que
levei o mínimo mesmo, é que só não usei o short e a camiseta.
Assustou-me o
agarramento que temos com hábitos e objetos. Não sabemos mais viver sem fita
dental, cremes, protetores, maquiagem, desodorante e outras traquitanas. A
viagem e o lançamento foram excelentes e ainda tive a oportunidade de filosofar
questionando esses nossos valores de prisioneiros da civilização. Afinal, quem
vive sem os confortos da vida moderna, tais como ar-condicionado, celular e
internet?
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Realmente, Mara, é espantosa a quantidade dessas "extensões da gente". Que atire a primeira pedra o franciscano capaz de despir-se delas... Abraços.
ResponderExcluirUm banho e um lavar de cabelos passam léguas do água e sabão. Imagine numa roça chupar você uma manga e não ter fio dental e demais tralhas? Incômodo na certa. Ser urbano demais estraga os passeios rurais. É preciso nos definirmos como frescos, e começarmos a abrir mão de alguns itens. Agradecida pelo retorno, Marcelo.
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