quarta-feira, 16 de abril de 2014

Não sabia que estávamos competindo!

* Por Fernando Yanmar Narciso

Costumo dizer que o jeito mais fácil de não se decepcionar com as pessoas é não conhecendo ninguém. Com tantas parafernálias tecnológicas, redes sociais, tralhas fabricadas pela Apple, tem sido cada vez mais difícil estabelecer relações com pessoas fora do mundo virtual. Nostálgicos aqueles tempos, quando se tinha um grupo grande de amigos e podíamos dizer qualquer coisa pra eles... Com o mundo real ficando cada vez mais parecido com o Facebook, quando um grupo de amigos se reúne numa mesa de bar, somos praticamente forçados a falar só das coisas boas da vida e de nossas grandes, incríveis, extraordinários conquistas semanais. Isso ou passar a noite toda um postando no Face do outro pelo celular, mesmo estando uns de frente pros outros.

Parece até que estamos presos dentro de um comercial de refrigerante da década de 1980, onde somos todos sorrisos e amizades, absolutamente nada de ruim acontece conosco. Mas sabemos que não é bem assim que a banda toca, né? Você sai da cama e as torturas diárias caem sobre nossas cabeças, como um cofre soltando da polia no 10º andar. Você vai trabalhar, e se não estiver pagando por cada pecado cometido, não está trabalhando. Se qualquer dia não for o pior dia de sua vida, o trabalho não está surtindo efeito. Aí vêm as dívidas, contas a pagar, problemas familiares, acasos da vida como doenças e imprevistos como um carro batido ou uma filha recém-grávida, aquele personagem da novela das 9 que você odeia e continua teimando em não ser morto...

Mas nem se atreva a desabafar com amigos ou conhecidos, estão ocupados ou distraídos demais para prestar atenção em nossas lamúrias! Raramente, e põe raramente nisso, uma alma caridosa decide pôr seus ouvidos à disposição do choro e dos chiliques do amigo, e é nessas ocasiões que descobrimos outra particularidade da era moderna: Quando as pessoas perdem a vontade de ouvir ao próximo, também perdem o dom de aconselhar. É de se esperar que, ao ouvir nossas agruras e secar as lágrimas, os amigos tenham algo a dizer que nos faça sentir um pouco aliviados, uma palavra de conforto ou um simples sorriso já bastaria para nos ajudar a absorver melhor a dor que nos pesa o peito.

Como já não existem mais glórias de guerra e cicatrizes de batalha já não servem como motivos para se gabar, o que sobra para esfregar na cara do próximo são nossas novas posses e feitos triviais. Estamos na era do “Eu me amo”, em tempos em que vale a pena contar vantagem quanto a tudo, inclusive nossos fracassos diários. O respeito pelo sofrimento alheio evaporou tão rápido como água num chão quente. Digam-me se alguma vez já não ouviram uma frase como “Ah, você acha que seus problemas são grandes? Espera até eu te contar os meus!”

Teve de retirar as amígdalas? Minha filha extraiu meio fígado e o pâncreas semana passada! Sua mãe morreu? Liga não, meu pai, minha mãe e cada um de meus avôs já morreram. A vida é assim mesmo! Sua filha sofreu aborto espontâneo? Besteira, minha filha e eu já abortamos três vezes cada uma! Tentaram assaltar sua casa? Ah, ‘cê supera isso! Entraram na minha já quatro vezes, me levaram três TVs, sete notebooks, o fogão, a geladeira, deram com um cano de ferro na minha cabeça e ainda engravidaram a diarista! Essa conjuntivite sua tá feia, heim? Mas não precisa me preocupar, afinal meu avô nasceu sem um olho!

Agradeço por ter ouvido meus problemas com tanto interesse e ter sido tão compreensivo... Só não deixe de me avisar quando cruzar a linha de chegada! Digam-me que, se não é assim que as pessoas tentam nos reconfortar, não é uma coisa bem próxima disso atualmente? Aparentemente, as pessoas aprenderam a evitar sentir as dores do próximo ao contar suas próprias dores, mal deixando o outro abrir a boca no processo. Na tentativa de ajudar, o ouvinte age como se estivesse apostando uma corrida conosco, contando tanta vantagem de seus próprios problemas que até lembram o capiau pescador, que chegava em casa dizendo “Peguei um peixão DEEEEEEESSE tamanho!”

A norma agora, ao sair com um grupo pra night, é deixar todo o sofrimento em casa e levar na carteira só as coisas boas da vida. Nada de chororô e de deprê, a gente só quer farra, cerveja, música alta e rir à toa. Foi com a finalidade de ter a quem praguejar contra tudo e todos que o confessionário da igreja e a psiquiatria foram inventados. Fora do divã, até podemos tentar desabafar com alguém e contar um ou outro problema, contanto que digamos como fizemos para resolvê-los. Algo como “Minha avó morreu, mas já foi enterrada e agora vivemos felizes para sempre.” Ou “Flagrei meu marido com outra na cama, mas já matei os dois e agora estou a colher flores no campo.”

Oh, the humanity... Por que não fomos avisados do funeral da compaixão, do velório da empatia?

*Designer e escritor. Contatos:

2 comentários:

  1. A vida pode ser de outro jeito: sejamos amáveis, pessoal, sem minimizar a dor alheia como se nada fosse, mas também sem ampliar suas dores para embalar as do outro.

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  2. O individualismo hoje é massacrante. Raros são os que nos dêem ouvido e se preocupam de verdade com nossos problemas. Ótimo artigo! A realidade é esta mesma, e você "esfrega" isso na nossa cara. Hoje em dia há muito disso tudo que está aqui nos seus argumentos.

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