A Via Sacra dos índios
* Por
José Ribamar Bessa Freire
A Semana do Índio
celebrada nas escolas do Brasil coincidiu este ano com a Semana Santa, quando o
mundo cristão rememora a paixão e morte de Cristo. Em Brasília, na Esplanada
dos Ministérios, a II Bienal Brasil do Livro e da Leitura programou no sábado
de aleluia, Dia do Índio, o seminário Narrativas Contemporâneas da História do
Brasil. Numa das mesas, no Auditório Jorge Amado, a índia Fernanda Kaingang,
advogada com mestrado em Direito Público, debate as desigualdades sociais no
Brasil com Muniz Sodré, Afonso Celso e este locutor que vos fala.
Qual é o índio
celebrado cada ano, em abril, que emerge nas narrativas da história do Brasil?
O índio de Pero Vaz de Caminha que permanece no imaginário dos brasileiros?
Aquele escravizado pelos bandeirantes ou o catequizado pelos missionários? O
índio da senadora Kátia Abreu e do agronegócio "obstáculo ao
progresso"? Ou o das descrições etnográficas dos antropólogos, que nos
ensina que outro mundo é possível? O "índio atrasado" ou o que
acumulou sofisticados saberes? A vítima do colonialismo ou o combatente que
resistiu?
Afinal, qual o pedaço
de nós que comemoramos no Dia do Índio? Ou ele não é parte de nós? No século
XVI, na polêmica com o advogado Sepúlveda, Bartolomeu De Las Casas afirmou que
durante todo o período colonial milhares de Cristos foram crucificados na
América, sem a esperança da ressurreição. Testemunha da dor, do sofrimento e da
resistência dos índios, Las Casas descreve o trajeto seguido por eles
carregando a cruz numa via sacra dolorosa, que vai do Pretório Ibérico até o
Calvário, de 1492 aos dias atuais.
As Estações
Logo na 1ª Estação, o
índio é condenado à morte. Colombo e Cabral que aqui desembarcam com a cruz,
perguntam às Coroas Ibéricas: "O que faço com o índio?" Aqueles que
querem se apropriar das terras indígenas gritam: "Que o crucifiquem".
Os reis lavam as mãos e através de leis e ordenações do Reino, entregam o índio
aos seus súditos.
Despojado de suas
terras, escravizado, na 2ª Estação, o índio começa a carregar a cruz às costas,
num processo que não terminou. Las Casas registra a invasão das aldeias, o
massacre e a prisão dos índios nas chamadas 'guerras justas': "Oh! Grande
Deus e Senhor, como podiam ser escravizados de 'forma justa' estando em suas
próprias terras e em suas casas sem fazer mal a ninguém?".
Na 3ª Estação, o índio
cai pela primeira vez, numa jornada de trabalho que dura até 18 horas diárias,
segundo Las Casas que detalha o recrutamento de menores e mulheres gestantes,
os acidentes de trabalho, os castigos físicos, as doenças, a alimentação
insuficiente: "E até mesmo as bestas costumam ter um tempinho de liberdade
para pastarem no campo e os nossos espanhóis nem sequer isto concediam aos
índios".
O encontro com a Mãe
acontece na 4ª Estação. A Mãe Terra, que dá vida aos seres do universo, símbolo
da fecundidade e da biodiversidade, tem sua alma transpassada por uma espada.
Matas devastadas, minas escavadas em busca de metais preciosos, rios poluídos,
animais, plantas e gente exterminados: a Mãe Terra é ferida de morte. Acontece
a maior catástrofe demográfica da histórica da humanidade: nunca um continente
foi esvaziado tão rapidamente como a América, escrevem os demógrafos da Escola
de Berkeley.
A cruz pesa em demasia.
Na 5ª Estação, os soldados obrigam Simão de Cirene, do Norte da África, a
ajudar a carregar a cruz, ao lado do Negro oriundo do mesmo continente. Com o
rosto ensanguentado, sujo, cansado e cheio de escarros, na 6ª Estação o índio
espera que apareça uma Verônica para enxugá-lo, para deixar a imagem da coroa
de espinhos gravada no lenço. Em vão. Como no poema "Los dados
eternos", de César Vallejo, vem a justificativa: "Tu no tienes Marias
que se ván".
Eliminar da História
Na 7ª Estação o índio,
esgotado, cai pela segunda vez, depois das novas investidas dos bandeirantes,
cujo modus operandi é descrito por Raposo Tavares em depoimento ao padre Vieira
“Nós damos uma descarga cerrada de tiros: muitos caem mortos, outros fogem.
Invadimos, então, a aldeia. Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as
nossas canoas. Se as canoas deles forem melhores que as nossas, nós nos
apropriamos delas, para continuar a viagem”.
As mulheres de Belém
estavam na 8ª Estação, ao lado de Maria Quitéria de Jesus, a baiana heroína da
Guerra da Independência, que depois recebeu o título de Patrona dos Oficiais do
Exército Brasileiro. No encontro com o índio, as mulheres paraenses e até Maria
Quitéria, embora sendo de Jesus, não choraram por ele, mas por elas mesmas e
por seus filhos.
Na 9ª Estação, a
terceira queda sob o peso da cruz ocorre, quando Paulo de Frontin, presidente
da Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, no seu
discurso oficial de abertura, declara:
“O Brasil não é o
índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e
em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser
considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los
e, não o conseguindo, eliminá-los”.
As cinco últimas
estações da via sacra, a caminho do Calvário, se localizam já no Brasil
republicano. O índio despojado de sua língua, de seus saberes, é
definitivamente eliminado das narrativas sobre a história do Brasil.
Na 10ª Estação, o índio
é esbofeteado na comemoração do 5° Centenário, em 2000, quando o então Ministro
da Cultura, Francisco Weffort, depois de fazer uma apologia dos bandeirantes,
propõe a criação do Museu Aberto do Descobrimento, incompatível com a
historiografia crítica e com o projeto intelectual de renovação da cultura
brasileira, numa vitória inequívoca do obscurantismo intelectual.
Anos depois, já como
ex-ministro, Weffort publica o livro "Espada, Cobiça e Fé - As Origens do
Brasil". No desenho que faz do
nosso país, ele justifica o calvário dos índios, afirmando que os bandeirantes
faziam "parte de uma cultura na qual a violência na vida cotidiana e o
saqueio na guerra eram recursos habituais. (...) Sei que os bandeirantes foram
brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com
eles. Então é preciso entendê-los".
Diakui Abreu
Na 11ª Estação, o índio
é ferido de morte pelo escárnio da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO, viche, viche)
em artigo no Caderno Mercado da Folha de São Paulo - Cidadania, e não apito. Presidente
da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), ela repete pela
milésima vez que o calvário dos índios se deve ao "difícil acesso à saúde
e não à falta de terra", fingindo não ver a relação entre uma e outra.
Admite, no entanto, que "se o problema consiste em terra, que sejam
compradas a preço de mercado" pelo Estado brasileiro "com seus
próprios meios que são os impostos extraídos de toda a populaçao
brasileira".
Na 12 ª Estação, ela
tenta convencer o índio agonizante que gosta dele e, por isso, "minha
homenagem pessoal aos povos indígenas fiz a cada nascimento de meus filhos que
não por acaso se chamam Irajá, Iratã e Iana". Além das terras, a senadora
se apropria também dos nomes indígenas. Anunciará qualquer dia, no Caderno Mercado,
que vai ao Cartório mudar de Kátia para Diakui Abreu.
Na 13ª Estação, o
deputado federal Osmar Seraglio (PMDB - PR, viche, viche), relator da Proposta
de Emenda Constitucional - a PEC 215 - enfia uma lança no ventre do índio ao
justificar, em artigo na FSP (19/04/14) que o poder de demarcar terras
indígenas deve ser transferido do Executivo para o Congresso Nacional,
atendendo os interesses da bancada ruralista, que torna inviável qualquer
processo de demarcação.
O protagonista da 14ª e
última estação é o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP- RS, viche, viche).
Ele apoia a Portaria do Ministério da Justiça que, antes mesmo da aprovação da
PEC 215, já permite a ingerência dos ruralistas nos estudos sobre demarcação de
terras indígenas. Na audiência realizada no município de Vicente Dutra (RS),
Heinze afirma que "índios, quilombolas, gays e lésbicas são tudo o que não
presta".
A partir daqui, a via
sacra continua,desdobrando a agonia lenta e inexorável em outras estações,
colocando em dúvida se um dia haverá ressurreição.
* Jornalista
e historiador
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