Quebrando os ovos
* Por
Marcelo Sguassábia
Duña,
o veneradíssimo ser, honorável guardião da sapiência cósmica, toma a palavra e
disserta vagamente sobre a Páscoa e seus cacaus, em depoimento exclusivo a Neca
Versante.
"Vivi a ilusão do
coelhinho até os meus 26 anos, quando me foi revelada, por um amigo vendedor de
raspadinhas, a verdade nua e crua. Custei a crer que o peludinho de olhos
vermelhos não era, nem nunca fora, entregador de ovos.
Como foi duro ver ruir
o que me parecia, até então, um dogma indiscutível. Lembro-me como se fosse
hoje do peso de sua mão direita no meu ombro, me consolando do baque, enquanto
a esquerda, sem que percebesse, me batia a carteira a céu aberto e em plena
praça. Não saberia dizer quem era mais FDP – o maldito vendedor de raspadinhas
ou o farsante coelhinho das Lojas Americanas.
Caí em depressão
profunda e me enfurnei no deserto de Atacama para um período sabático de
reflexão e prece. Ao invés de encontrar os eixos, os entortei de vez. Como que
numa espécie de efeito dominó, outras arraigadas crenças, fundadoras da minha
personalidade e mais tarde da minha seita, passaram a ser alvo de incômoda
desconfiança. E coloquei em xeque a existência de outros ídolos, como o
boitatá, os elementais das minas, os anjos da guarda e o obeso mórbido que por
essas plagas chamam de Papai Noel.
Mas era o mamífero
orelhudo a desilusão da vez. Esmurrava o peito e dava fortes cacetadas na
cabeça, me autoflagelando por ter sido tão crédulo, deixando-me enganar por
tanto tempo. Pus-me a recordar a Páscoa do ano anterior ao da revelação
fatídica. Cursava MBA a milhares de quilômetros de distância, mas isso não era empecilho para desfrutar dos
folguedos pascais junto a papai, mamãe e titia Verena. A passagem era cara, o
ônibus judiado, o sujeito da poltrona ao lado tinha sérios problemas de
regorgitamento e foram oito longas horas de infortúnio até a casa paterna. A
tudo isso relevava, com a perspectiva do coelho e seus doces ovos, acalentando
a sonhada possibilidade de flagrá-lo enquanto escondia seus tesouros deste
marmanjo duñesco.
Findo o período
sabático, equivalente a 214 programas do Raul Gil incluindo os intervalos comerciais,
sacudi a areia grudada no traseiro e parti de Atacama com o firme propósito de
iniciar meu apostolado em Sertãozinho. Não era fácil encarar serenamente tão
ambiciosa empreitada. Os milhões de seguidores que tenho hoje reduziam-se na
época a nenhum, e o golpe sofrido com o desencanto do coelho ainda não
cicatrizara por completo. Mas ergui a cabeça e segui em frente. O resto é
história, já fartamente documentada nas mais de três mil biografias sobre minha
pessoa e meu projeto missionário".
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Que delícia de Páscoa, de coelhinho e principalmente de chocolate. Poucas pessoas não o apreciam, mas e principalmente que gostosura de confissão. Duña é a sinceridade em pessoa, e você, Marcelo, seu porta-voz. Foi boa a diversão.
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