Uma bunda no carnaval de 2002
* Por Ronaldo Bressane
O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, adaptado para o
cinema por Heitor Dhalia, com roteiro de Marçal Aquino, é lançado no Festival
de Cinema do Rio de Janeiro
“Não passo de um pedaço de carne
que desenha – um bife que conta histórias”, assim uma vez o Mutarelli
definiu-se, durante a primeira conversa que tivemos. É estranho – por familiar
– pensar nisso quando lemos O cheiro do
ralo, seu primeiro romance. Exato como um músculo, adequado à sua função motora;
identificado com o gesto em sua mais mínima ação é o livro. Uma essencialidade
que tive raras vezes a chance de testemunhar de tão perto. Foi um privilégio,
quando, depois daquele Carnaval de 2002, recebi o telefonema de Lourenço:
“Então, escrevi um livro!”, contava, como uma criança que tivesse fritado uma
formiga com uma lente de aumento. “Foi tão rápido, se a gente comparar com o
tempo que eu levo pra desenhar uma página...”, comentava o cartunista, autor de
prodígios da graphic novel como Transubstanciação
[1989] e a tetralogia estrelada pelo detetive Diomedes [1999-2002], agora
recém-nascido novelista. Tinha escrito o romance entre o sábado de Zé Pereira e
a quarta-feira de Cinzas.
Me mandou o livro por e-mail e eu
o li enquanto assistia aos entediantes e hipnóticos desfiles das escolas de
samba campeãs do Grupo Especial carioca, aquele desfile de bundas maravilhosas,
inebriante à náusea (o som da TV desligado, plugado em algo como Morphine,
talvez, não lembro bem). Bundas chacoalhantes na minha TV e o livro na tela do
meu PC, eu compreendia e ao mesmo tempo não sacava o que tinha à minha frente
(o livro, não as bundas). Era tudo muito denso, engraçado, sedutor, pesado e
flutuante, se bem que específico – uma bunda. Os glúteos gêmeos que musculam o
começo e o fim do mundo, ou de um mundo particular: o desejo e o excremento, a
flor e o fedor, um abismo visto por um olho de vidro. Mutarelli tinha chegado
ali, ó.
Um enredo obscuramente
brasileiro, nunca antes escrito: um dono de loja de penhores obcecado pela
gigantesca bunda de uma garçonete, obcecado pelo olho de vidro que um cliente
lhe penhora, obcecado pelo cheiro fétido que vem do ralo do banheiro em seu
escritório. Com somente quatro elementos, usando uma linguagem beckettiana
próxima tanto da poesia quanto do roteiro de cinema, Mutarelli estreou com um
dos romances – e com um dos textos – mais perturbadores da prosa contemporânea.
O olho na mão do narrador a focar o ralo e a bunda, Aleph e Rosebud – é
impressionante como, em pouquíssimas linhas, se pode ir do ponto que concentra
todas as coisas, conforme enquadrado num conto de Borges, ao eixo de Cidadão Kane, de Welles, num mood de
arrabalde paulistano, quase brega em sua apaixonada carnalidade. Próximo ao fim
do romance, quando o narrador aproxima bruscamente a imagem do trenó de Kane ao
portal metafísico de Buenos Aires, ele rememora “The unending gift”, o poema em
que Borges reflete sobre a morte de um pintor que lhe havia prometido um
quadro, contudo não chegou a ter tempo para terminá-lo. “Pensei num lugar prefixado que a tela não/ ocupará./ Pensei depois: se
estivesse aí, seria com o tempo/ uma coisa a mais, uma das vaidades ou/ hábitos
da casa; agora é ilimitada,/ incessante, capaz de qualquer forma e/ qualquer
cor e a ninguém vinculada./ Existe de algum modo. Viverá e crescerá como/ uma
música e estará comigo até o fim.”
Ainda não sei o que Marçal e
Heitor aprontaram, nem sei como Selton encarnou o anônimo narrador, não ouvi a
voz da bunda, não assisti ao filme. Porém – espero –, imagino que tenham
capturado o precioso enigma desse samba noir. Se, sem aprisionar a imaginação
do espectador em um conceito único, o filme for como um músculo – falar,
sentir, pensar, chegar a alguma instância do divino como um músculo apreende um cheiro –, então a história de
Mutarelli terá sido contada com fidelidade. Com a fidelidade que se pede de um
olho de vidro – jamais caia da órbita. Apesar daquela bunda maravilhosa, ali
bem ao alcance do nariz, ó.
* Ronaldo Bressane é escritor (Céu de Lúcifer) e redator-chefe da revista
Trip (www.trip.com.br); seu blog é o
Impostor (impostor.wordpress.com).
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