Meninos eu ri
* Por
José Ribamar Bessa Freire
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava,
do que ele contava, dizia prudente:
- "Meninos, eu vi". (Gonçalves
Dias).
Esses são os últimos versos do poema I-Juca Pirama - aquele
que deve morrer - escrito por Gonçalves Dias em 1851. O narrador é um velho
Timbira que, em dez cantos, rememora as dramáticas peripécias de um guerreiro
tupi que cai prisioneiro e é condenado à morte. Os 484 versos que compõem essa
história foram cantados, nesta semana, na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) por alunos Guarani, Kaingang e Laklãnõ do Curso de Licenciatura
Intercultural Indígena, nas aulas de literatura ministradas por este locutor
que vos fala.
- Meninos, eu vi! - concluiu o velho Timbira para eliminar qualquer
dúvida.
- Meninos, eu também vi - digo eu, embora o que vi seja difícil de
acreditar. Depois da aula, na quarta-feira à noite, na telinha da taba, eu vi,
meninos, o Jornal da Noite da Band Bad News. Vi e ouvi. Lá estava
Boris Casoy - aquele jornalista que tratou os garis com desprezo - falando
merda outra vez. Anunciou que, agora, basta qualquer um se autodeclarar índio
para que tenha terra concedida por laudos antropológicos feitos com critérios
duvidosos. Achincalhou e desqualificou garis e, agora, índios e antropólogos,
fazendo biquinho de chaleira. Isso-é-u-ma-ver-go-nha!
Fugindo do Boris, mudamos de canal para a Globo-No-News-Good-News. Lá,
Alexandre Garcia entrevista o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária,
o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS - viche, viche), que repetiu a
mesma merda do Boris. Falou que os conflitos por terra são causados por
"maquinação" de antropólogos que produzem laudos fraudulentos. Contou
que uma antropóloga de Santa Catarina bebeu chá do santo daime, teve uma
miração, enxergou terras ocupadas por pecuaristas e, cheia do chá, opinou pela
desintrusão da área em favor dos índios.
Os escrivães da frota
- Se os índios querem terra, que comprem - bradou o varonil depufede pecuarista,
para quem a terra é uma mercadoria e nada tem de sagrado. Engatilhou aquele
papo de "muita terra para pouco índio" no que foi apoiado por
Alexandre Garcia, para quem os "aculturados" não são "índios de
verdade". Cleber Buzatto do Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
paciente, fez um contraponto inteligente, exemplificando que a Fazenda
Bodoquena (MS) tinha 40 mil cabeças de gado vivendo em 80 mil hectares,
enquanto 45 míl indios guarani kaiowá estavam encurralados em apenas 30 mil
hectares.
O boi e a vaca tem mais espaço para viver do que os índios. Mas a
"inguinorância" do depufede pecuarista não tem limites. Ele ignorou
esse dado, mudou de assunto e assustou o telespectador:
- Você pode perder seu apartamento, seu carro, sua terra por causa do
laudo antropológico fraudulento - ameaçou.
O rei de Portugal tinha um escrivão, mas o agronegócio tem
muitos. Eles estão afinadíssimos, tocando na mesma orquestra, obedientes à
batuta de um único maestro. Isso que eles fazem não é jornalismo. No lugar de informar,
fazem proselitismo. Não relatam o que houve, mas o que ouvem. E só ouvem
ruralistas, nada mais que ruralistas, exclusivamente ruralistas, com raras
exceções. Ouvir o outro lado, os índios? Nem morta, filha. Não são jornalistas,
são escrivães da frota, cujo objetivo é avisar ao seu rei - o agronegócio - que
descobriram novas terras "devolutas" a serem conquistadas e ocupadas.
Esses pero vaz de caminha de igarapé desencadearam nos últimos tempos
uma campanha orquestrada, uma ofensiva sem precedentes para ganhar o apoio da
opinião pública contra os direitos constitucionais dos índios sobre a terra.
Eles sabem que os índios são olhados com simpatia pela parte generosa do povo
brasileiro, capaz de se indignar contra a injustiça. Não poderão abocanhar as
terras indígenas, se a solidariedade se manifestar. Tratam, então, de
desmantelá-la, deformando a imagem do índio.
Um riso nervoso
Os escrivães da frota estão usando a mídia para um novo tipo de
catequese, querem converter os brasileiros para a religião do
"desenvolvimento a qualquer preço", numa ofensiva sistemática,
bombardeando a opinião pública com a mesma xaropada. Mente, mente, que algo
fica. Apresentam os índios como obstáculos ao desenvolvimento econômico. Querem
impedir a demarcação de terras indígenas. O agronegócio recrutou o mesmo
exército de escribas que atuou no caso do Código Florestal, além de bancar
ações fora-da-lei como a proposta do Leilão da resistência para a formação de
milícias armadas.
Meninos, eu ri, mas foi um riso nervoso. Confesso meu medo diante dessa
escalada sistemática, truculenta, com grande poder de fogo. Cada vez que ouço
esses arautos da boçalidade, fico com o pescoço francês na mão. Assustam
declarações como a do representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Humaitá
(Am), um tal Carlos Terrinha (Folha de São Paulo 1/1/14), que ameaçou:
- Hoje, se um índio vier à cidade, vai morrer - disse. E ficou por
isso mesmo.
Meu pescoço francês fica apertado nessa hora. Minhas esperanças só se
renovam quando vejo, como vi na UFSC - meninos eu vi - os universitários
indígenas se qualificando. Assisti a apresentação de trabalhos de pesquisa
apresentados por mais de 80 índios, muitos deles sobre etnomapeamento de
diferentes aldeias indígenas, apoiados em técnicas, instrumentos e
programas como o Google Earth, Google maps e imagens de
satélites.
Este é o contraponto ao discurso truculento dos escrivães da frota. A
resposta dos índios é o conhecimento cada vez mais profundo sobre seus
territórios. Não é mais possível enganá-los. Eles estão mapeando tudo:
território, tipos de solo, rios, nascentes, cachoeiras, cascatas, árvores,
plantas medicinais, línguas, topônimos, aspectos físicos e ambientais,
desmatamento e poluição causado por estradas e barragens, além do registro dos
mitos e das historias locais. Foi isso, meninos, que eu vi na Universidade Federal
de Santa Catarina.
* Jornalista
e historiador
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