O estupro de Madhyamgram
* Por Marco Vasques
Atearam fogo em suas vísceras. Atearam fogo em sua pele de menina na
cidade de Madhyamgram. Na Índia, as mulheres estão sitiadas por um estado de
violência e crueldade repugnantes. Estupros coletivos ocorrem com frequência.
As legislações vigentes beneficiam o crime contra a mulher. E como os covardes
nunca andam sozinhos, unem-se em bando para saquear as vidas que lhes deram
vida. Ela foi estuprada por duas vezes consecutivas. Ao tentar denunciar seus
algozes, toda incendiada por dentro; toda labareda de incertezas; toda queimada
de sêmen intruso, veio o golpe letal. Os mesmos homens que a possuíram a
fórceps, inquisidores anacrônicos, incendiaram sua carne. Não bastou incinerar
a alma daquela menina, tiveram que carbonizar seu silêncio.
Aqui, crianças são queimadas no Maranhão. Meninos e meninas assassinados
nos cantinhos indesejados de nossas cidades. Madhyamgram também fica na
América, porque na geografia insana da perversidade não existe território
imune. A notícia que chega da Índia não nos é estranha. Aproximadamente 13
mulheres são assassinadas por dia no Brasil. O estupro, para nossa vergonha,
corre solto nos vestíbulos familiares. Sim, todas as pesquisas mostram que por
aqui a violência sexual contra mulheres e crianças é praticada, em sua grande
maioria, por pessoas próximas, ou seja, por pais, tios, primos, padrasto, e
vizinhos. Não bastasse a dor de ter o corpo violado, ainda impera um regime
perpétuo de silêncio. O violentador represa a vítima da fala, exige silêncio
com um amontoado de ameaças físicas e psíquicas.
A menina de Madhyamgram morreu no dia primeiro de janeiro. O mundo em
fogo de festa e ela, sem fresta de luz nos olhos, se despedia da dor. Ela teve
que correr em chamas pela casa para iluminar nossas vergonhas. Não resistiu.
Não, não temos o que festejar. E engana-se quem pensa que o abuso sexual é
apenas fruto da falta de educação, da falta de informação ou de dinheiro.
Artistas referenciados por multidões, com grande formação intelectual e muita
riqueza, também praticam barbarismos. Empresários renomados, jogadores de
futebol milionários, professores universitários e políticos, por exemplo,
ajudam a avolumar as estatísticas das ruínas.
Não podemos prever onde, como e quando uma próxima mulher ou criança
será violada. Talvez a única esperança seja arrancar a mordaça impetrada às
vítimas e fazer com que a suposta vergonha a elas imputada seja imposta aos
usurpadores de suas escolhas, de suas liberdades e de suas vidas. Precisamos
acabar com cultura de envergonhar nossas vítimas e de fazer com que elas
permaneçam em silêncio.
Publicado
no jornal Notícias do Dia [20/01/2014]
*
Poeta e bacharel em Filosofia
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