Jornal
do caos
Vênus
* Por Ronaldo Bressane.
O dia azul... pensei em pão com manteiga. Mas a
chuva caiu de repente, eu vi as pessoas lá embaixo se morcegando,
pequenininhas, um soluço... Choveu o dia inteiro. Outra vez não saí de casa. Me
lembro às vezes – flashbacks ou déjàvus – da emoção que tive a primeira vez que
vi uma manchete. Era minha irmã, me acordando aos berros na casa de nossos
tios: –
nossa casa pegou fogo,
nossos pais morreram
Eu
voltei de dentro dos meus sonhos pra cima da cama mijada como Prometeu que
roubava o fogo: na sua histeria de fofoqueira de aldeia saqueada, minha irmã me
dava minha primeira noção de um fato absoluto. Um fato nada mais é que uma ação
que muda irremediavelmente o futuro – aí, de vez o mundo dos não-fatos se perdeu
de mim, e portanto, a causalidade dominaria todo o meu tempo, não haveria mais
saída de emergência para o dois mais dois. De dentro dos meus sonhos, me foi
comunicado que meu mundo de sonhos desconexos havia terminado... Dali para a
frente, meu cotidiano sucumbiria à voragem dos acontecimentos com causa e
efeito e lugar e época e personagens e um sentimento de irrestrita verdade
(verdade: meus pais sempre me falavam que preferiam, a serem sepultados, o
crematório da Vila Alpina, então tudo bem, beleza).
Tenho parado de acreditar nisso a cada manhã que
vejo o casal de velhos na casa em frente à padaria francesa alimentar os pombos
da rua. Eles deveriam me ensinar alguma coisa – ah, mais uma, eu, esse
infatigável viciado em aprender e esquecer. Tive uma pequena alegria – me dei
conta de que era sexta-feira –, e resolvi dar uma festa, pra qual não convidei
ninguém, exceto o motoboy, que saiu do elevador com a roupa toda molhada e uma
pizza de rúcula e mussarela de búfala e tomate seco e um guaraná; mas ele não
disse que não podia me acompanhar, daí comi a pizza enquanto lia as palavras
impressas no disco de papelão delivery como quem solfeja um mantra tibetano.
Ainda não consigo dormir com as luzes apagadas.
À tarde, pela primeira vez desde que me formei em jornalismo,
há quinze anos, consegui escrever uns versos... Lendo o poema agora, não tenho
total certeza de tê-lo escrito eu mesmo ou um outro. Melhor acender mais um,
tomar um, deixa ver, dramin, e contar as gotas escorrendo pela janela enquanto
o poema de que eu jamais me lembrarei arde no cinzeiro, em chamas (em chamas
meu rosto – palor, luzes sombrias – refletido no vidro da janela, oculto do
exterior pelas venezianas; janela de onde não virá nenhuma verdade... Não
desisto de procurar ser surpreendido por um milagre).
__
Quinta parte de “Jornal do
caos”, conto de Céu de Lúcifer
(Azougue Editorial)
*Escritor, jornalista e
editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias
publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção
Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
Nenhum comentário:
Postar um comentário