Emagrecimento
* Por
Marco Albertim
Chico Pousadas
escrevera no seu diário que há seis meses vinha tomando vinagre para emagrecer,
uma colher de sopa todas as manhãs, em jejum, mesmo sem ter ingerido qualquer
alimento calórico. Vinagre de álcool, nocivo a seu fígado
já intumescido pela ingestão diária de uísques. O vinagre, em que pese a
acidez, dava-lhe o prazer de sentir as camadas de gordura do corpo, encolhendo,
sem resistência a seu propósito de perder vinte quilos em um ano. O gordo Chico
Pousadas tinha cento e vinte quilos.
Numa manhã de janeiro,
inda que o verão se anunciando com o sol incidindo luz nas flores do flamboaiã
nos fundos de seu quintal, a chuva molhou a copa e os galhos mais baixos da
árvore; com a chuva minguando, o sol voltou a zunir; os galhos do flamboaiã,
apoiando a juntura das folhinhas redivivas, também incidiram brilho nos olhos
escuros de Chico Pousadas.
Legitimando a lona da
espreguiçadeira com a armação de mogno, sentou-se meio deitado; a lona não
rangeu. Chico Pousadas convenceu-se de que o móvel, no surdo conluio com o
vinagre, acumpliciara-se com seus desígnios.
- Anísia! - não gritou,
mas com habilidade juntou autoridade e prazer, sentindo que o cessar da chuva,
o flamboaiã redivivo e a solicitude da esposa com a garrafa de uísque em sua
direção, tudo, até a quietude do vento vindo do sudeste, era um concerto de
boas-vindas a seu ritual de todas as manhãs.
Convém acentuar o
perfil de Anísia, visto que há trinta anos decidira se casar com Chico
Pousadas, então não tão gordo quanto agora, sentado na espreguiçadeira,
sorvendo o perfume do flamboaiã. Chico Pousadas nunca fora esbelto, mas a
habilidade de juntar palavras cumprira, sem confessar, o ofício de encobrir os
defeitos do físico. Anísia, exibindo uma cor amendoada no corpo franzino, inda
que nariz, boca e olhos na mesma proporção do rosto triangulado, não era bela,
nunca fora; dir-se-ia que suas feições, incluindo a lisura dos cabelos na
altura dos ombros, interromperam a transição da indefinição dos traços, ali
estacionaram para dar conta apenas da intenção de se tornarem belas.
O casal tivera tempo e
disposição para gerar três filhos; os dois mais velhos, sem mostrar qualquer
traço de herança genética do pai, cresceram sem excessos em cada um dos troncos;
o mais novo, melhor dizendo, a mais nova, com vinte e um anos, a mesma idade do
flamboaiã, não tinha nada de luzente no rosto papudo, nos quadris largos, nas
pernas com inchaço precoce; do pai, também lhe coubera a viveza de espírito.
Não repetia pilhéria dos outros, tão comum a espíritos com pretensões de
originalidade; dizia-as no calor das palavras, fitando o interlocutor nos
olhos, sem cálculos e misturando palavrões, inda que roçassem a virilidade
moral de Chico Pousadas.
Descanse o corpo mas
não poupe a papa que me fez nascer - disse uma vez ao pai, entornando um gole
do mesmo uísque e mirando nos olhos submissos da mãe.
Anísia assistira sem
inquietação o crescimento dos filhos, sem sustos com os indícios de carnosidade
em Ivete. Chico Pousadas, com uma preocupação sem forças para deter o apetite
do estômago, engordara e conveio que dormir na cama do casal doía-lhe mais que
acomodar as ancas na espreguiçadeira; até para se levantar, Anísia, com o braço
estendido ao marido, teria que fazer pouca força no corpo miúdo.
Depois do terceiro
uísque, Anísia, a pedido do marido, trouxe-lhe o diário. Não tinha segredos com
ela. E Anísia prelibava-se nos escritos da intimidade do marido, compensando-se
da escassez dos contatos carnais.
- Leia o que eu escrevi
ontem à noite. Chame Ivete.Quero que ela ouça também.
Chico Pousadas sentiu
calor. Pediu que Anísia o ajudasse a tirar a camisa. Ivete sentou-se ao lado do
pai, sorvendo o suor de seu tronco.
Tomo vinagre todos os
dias para emagrecer. Não vou emagrecer, mas dou provas de que resisto e acho
graça na ingenuidade de Anísia e de meus filhos. O uísque me dá mais prazer.
Sinto juventude no gelo misturado ao uísque. A papa que Ivete me gaba dorme
inativa nos escrotos. As calorias impedem-na de ruir para fora. O coração, tão
mole quanto a papa, bate preguiçoso. À noite, quando fecho os olhos, sinto que
o coração também tem sono. Inspiro e solto o ar com a boca. O coração se
reanima. Não demora e vou secar minha gordura numa gaveta mortuária."
Ivete removeu o
suor da testa de Chico Pousadas com a mão; umedeceu os
dedos com um líquido
frio, quase gelado.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de
Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia.
Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008,
obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do
Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e
“Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
Originalidade pura substituir o sexo pela intimidade do compartilhamento do diário.
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