Sangue, suor e lágrimas no travesseiro
* Por Mara Narciso
Naquela grande viagem noturna de ônibus
comum, a estrada passa, o sono castiga, a cabeça fica zonza, mas a nave
balouçante impede o relaxamento e o adormecer. Muitos estralam os olhos e nem
remédio faixa preta permitem-lhes conciliar o sono. Para outros, um tapa-olho,
uma colcha amiga e o aconchego do travesseiro trazido de casa ajudam a dormir,
confirmando que uma boa companhia pode ser o começo de tudo, o sono aí incluso.
E no hotel, lá está ele.
As trágicas noites insones de negócios
ou de amores perdidos podem ter no travesseiro o confidente certo para a
tormentosa travessia. Nas horas mortas, depois de uma boa festa ou show, já em
véspera de o sol nascer, o cérebro, naturalmente excitado, demora a se acalmar,
até que, por fim, exausto se desliga. Sob a cabeça, o companheiro de sempre,
macio, nem alto e nem baixo, acolhedor, o velho travesseiro, com o conhecido
odor do dono.
Sabe-se que para dormir mais rápido,
quando a mente prefere vagar, é preciso parar de pensar de forma racional,
largar a lógica, esvaziar o pensamento, pensar em nada, imaginar a superfície
de um lago ou uma parede branca com um ponto preto, para a cabeça ficar leve e
a pessoa adormecer. Mas quando a alegria da conquista é grande, fazem-se
contas, esboçam-se planos e o habitual travesseiro perde sua serventia, não
controlando o impulso de pensar descontroladamente. É quando mais se demora a
dormir, e se tem confirmada a história do “na alegria e na tristeza”, só que em
outro contexto.
Por outro lado, nos lutos das grandes
perdas, falta energia à vítima, havendo necessidade de se ficar largado sobre
cama e travesseiro. Alguns, nessas situações limite, mal conseguem abrir os
olhos e muito menos se levantar. São muitas as lágrimas. Felizmente, mesmo nas
catástrofes, o ser humano reage e em algum tempo está de pé para enfrentar as
fases que virão.
Olhar para o travesseiro e ver que se
perde cabelo, e se preocupar é o caminho curto para se perder mais cabelos e
também o sono. Bem se conhece o dito popular de que preocupação faz fugir a
cobertura capilar. No caso, mesmo que pareça impossível, melhor ignorar o fato,
pelo menos na hora em que for se deitar. É inútil tentar catar o que se perdeu.
“Ninguém volta ao que acabou” (Chico Buarque). Tem mais futuro pensar no que se
pode obter, a partir de agora, porém, sem planos mirabolantes, para não ter
insônia.
O medo tira o sono, desafiando o mais
macio e amigável travesseiro. Incluem-se aí as doenças. E a culpa? E o ciúme,
então? Bem, melhor parar a lista por aqui, para o nosso amigo das noites não desanimar.
Mas há as leituras noturnas, em busca de relaxar e pegar no sono. Ler Platão,
por ser monótono, como dizem, ajuda? Ver um filme. Nada de temas excitantes.
Melhor ater-se a assuntos leves, enfrentar o banho, o leite morno, a música
suave e o prazer de se recostar no conhecido travesseiro e sentir-lhe o afago
na nuca. Então, é aguardar pela lerdeza mental e o sono que vão chegar.
Pode-se querer manter por teima o
objeto antigo, o travesseiro mal-cheiroso, que pelo tempo e aparência deveria
ser extinto. De preferência queimado. Mas alguém se decide pela sua manutenção,
e para tal é mergulhado em água e sabão, para ser lavado com escova.
Arduamente. E o caldo escuro em que a água se transforma, tira suores,
lágrimas, pensamentos e histórias recentes e antigas. E ainda manchas de amor,
tatuadas quando usado em função não convencional, sob o quadril, em lugar de
sob a cabeça.
Então, na hora da lavação pode-se
imaginar o que um objeto tão íntimo encerra. “Se meu fusca falasse”, que nada!
Para conhecer o interior de uma alma, é bom conversar com o travesseiro. E
preservá-lo, lavando-o e colocando-o ao sol, não o trocando a cada dois anos,
como sugerem os fabricantes, e assim, esse amigo poderá durar mais do que o
planejado. E quando perguntado, se isso interessar a alguém, o antes fofo
objeto poderá cometer algumas, ou mesmo todas as inconfidências. Ainda que não
fale, um travesseiro pode mostrar exatamente tudo.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Eu tinha um cobertor que nem deixava minha mãe lavar, dizia que ia matar o cheirinho dele. Ela me ignorou, pegou meu trapo e jogou fora sem se dar conta que faltava um pedacinho do meu "miminho", como jogar fora anos de convívio e segredos? Valeu Mara! Abração!
ResponderExcluirAlgumas crianças ganham na hora de dormir, um "paninho de cheirar", que acalma e traz o sono por ser um pedacinho dela, bem conhecido e amigo. Feliz com sua manifestação, Núbia.
ExcluirBela crônica, sobre assunto que atomenta muita gente - inclusive este comentarista. Muito bom, Mara.
ResponderExcluirAgradecida por suscitar lembranças. Muito obrigada, Marcelo.
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