quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Sangue, suor e lágrimas no travesseiro

* Por Mara Narciso

Naquela grande viagem noturna de ônibus comum, a estrada passa, o sono castiga, a cabeça fica zonza, mas a nave balouçante impede o relaxamento e o adormecer. Muitos estralam os olhos e nem remédio faixa preta permitem-lhes conciliar o sono. Para outros, um tapa-olho, uma colcha amiga e o aconchego do travesseiro trazido de casa ajudam a dormir, confirmando que uma boa companhia pode ser o começo de tudo, o sono aí incluso. E no hotel, lá está ele.

As trágicas noites insones de negócios ou de amores perdidos podem ter no travesseiro o confidente certo para a tormentosa travessia. Nas horas mortas, depois de uma boa festa ou show, já em véspera de o sol nascer, o cérebro, naturalmente excitado, demora a se acalmar, até que, por fim, exausto se desliga. Sob a cabeça, o companheiro de sempre, macio, nem alto e nem baixo, acolhedor, o velho travesseiro, com o conhecido odor do dono.

Sabe-se que para dormir mais rápido, quando a mente prefere vagar, é preciso parar de pensar de forma racional, largar a lógica, esvaziar o pensamento, pensar em nada, imaginar a superfície de um lago ou uma parede branca com um ponto preto, para a cabeça ficar leve e a pessoa adormecer. Mas quando a alegria da conquista é grande, fazem-se contas, esboçam-se planos e o habitual travesseiro perde sua serventia, não controlando o impulso de pensar descontroladamente. É quando mais se demora a dormir, e se tem confirmada a história do “na alegria e na tristeza”, só que em outro contexto.

Por outro lado, nos lutos das grandes perdas, falta energia à vítima, havendo necessidade de se ficar largado sobre cama e travesseiro. Alguns, nessas situações limite, mal conseguem abrir os olhos e muito menos se levantar. São muitas as lágrimas. Felizmente, mesmo nas catástrofes, o ser humano reage e em algum tempo está de pé para enfrentar as fases que virão.

Olhar para o travesseiro e ver que se perde cabelo, e se preocupar é o caminho curto para se perder mais cabelos e também o sono. Bem se conhece o dito popular de que preocupação faz fugir a cobertura capilar. No caso, mesmo que pareça impossível, melhor ignorar o fato, pelo menos na hora em que for se deitar. É inútil tentar catar o que se perdeu. “Ninguém volta ao que acabou” (Chico Buarque). Tem mais futuro pensar no que se pode obter, a partir de agora, porém, sem planos mirabolantes, para não ter insônia.

O medo tira o sono, desafiando o mais macio e amigável travesseiro. Incluem-se aí as doenças. E a culpa? E o ciúme, então? Bem, melhor parar a lista por aqui, para o nosso amigo das noites não desanimar. Mas há as leituras noturnas, em busca de relaxar e pegar no sono. Ler Platão, por ser monótono, como dizem, ajuda? Ver um filme. Nada de temas excitantes. Melhor ater-se a assuntos leves, enfrentar o banho, o leite morno, a música suave e o prazer de se recostar no conhecido travesseiro e sentir-lhe o afago na nuca. Então, é aguardar pela lerdeza mental e o sono que vão chegar.

Pode-se querer manter por teima o objeto antigo, o travesseiro mal-cheiroso, que pelo tempo e aparência deveria ser extinto. De preferência queimado. Mas alguém se decide pela sua manutenção, e para tal é mergulhado em água e sabão, para ser lavado com escova. Arduamente. E o caldo escuro em que a água se transforma, tira suores, lágrimas, pensamentos e histórias recentes e antigas. E ainda manchas de amor, tatuadas quando usado em função não convencional, sob o quadril, em lugar de sob a cabeça.

Então, na hora da lavação pode-se imaginar o que um objeto tão íntimo encerra. “Se meu fusca falasse”, que nada! Para conhecer o interior de uma alma, é bom conversar com o travesseiro. E preservá-lo, lavando-o e colocando-o ao sol, não o trocando a cada dois anos, como sugerem os fabricantes, e assim, esse amigo poderá durar mais do que o planejado. E quando perguntado, se isso interessar a alguém, o antes fofo objeto poderá cometer algumas, ou mesmo todas as inconfidências. Ainda que não fale, um travesseiro pode mostrar exatamente tudo.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



4 comentários:

  1. Eu tinha um cobertor que nem deixava minha mãe lavar, dizia que ia matar o cheirinho dele. Ela me ignorou, pegou meu trapo e jogou fora sem se dar conta que faltava um pedacinho do meu "miminho", como jogar fora anos de convívio e segredos? Valeu Mara! Abração!

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    1. Algumas crianças ganham na hora de dormir, um "paninho de cheirar", que acalma e traz o sono por ser um pedacinho dela, bem conhecido e amigo. Feliz com sua manifestação, Núbia.

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  2. Bela crônica, sobre assunto que atomenta muita gente - inclusive este comentarista. Muito bom, Mara.

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    1. Agradecida por suscitar lembranças. Muito obrigada, Marcelo.

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