Hanna e seu avô
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Abro o jornal. Dois renomados colunistas do Globo, cujas
crônicas são em geral atraentes, escrevem sobre suas próprias netas. Morro de
inveja. Bem que gostaria de imitá-los, mas sou contido por um certo pudor.
Embora o tema me interesse, há quem os critique neste caso, ressaltando a
excessiva exposição da privacidade, que caracterizaria uma "falta de
decoro parlamentar". O fato de não demarcar a fronteira entre o público e
o privado compromete a qualidade do texto?
Faltou-lhes distanciamento crítico, mas qual é o avô que consegue falar
da sua neta sem arriar os quatro pneus? Daí surge uma dúvida assaz atroz: o
leitor exigente e, convenhamos, invejoso, não perdoa os dois cronistas. Mas o
neto que algum dia fomos ou que ainda somos olha com condescendência e até com
simpatia os avós que escrevem. De qualquer forma, neste caso, talvez seja mais
prudente ouvir a voz de Carlos Drummond:
- Não faças versos sobre acontecimentos. O que pensas e sentes,
isso ainda não é poesia.
É uma pena! Os netos, que nos encantam, por si sós não rendem
literatura. Quer dizer, os nossos netos não, mas podemos manter o recato e
fazer uma fezinha com os netos dos outros, penetrando "no reino surdo das
palavras", em busca do que há de universal na relação com os avós. Falar
sobre a neta de terceiros é menos indecoroso do que sobre a própria, além de
permitir aquele distanciamento brechtiano. Com essa esperança, recorro, então,
ao velho Pepê, com histórias de sua neta Hanna que agora vos repasso.
Palavrão
Ouçamos, ora pois pois, Pedro Pereira, que já passou dos 70 anos. Seu
nome é uma homenagem feita pelo pai, um sindicalista português, ao anarquista
russo Piotr Kropotkin. Pedro queria seguir carreira diplomática e foi estudar
filosofia na Universidade de Coimbra, mas perseguido pela ditadura fascista de
Salazar, fugiu da guerra colonial, nos anos 1960, se refugiou na França e logo
depois se exilou no Brasil. Aqui ficou conhecido como PP entre os amigos do
Largo do Bicão, na Vila da Penha, onde mora.
Nas barricadas do Quartier Latin, em maio de 1968, levantou
a bandeira do "é proibido proibir". Herdou dos anarquistas, além do
nome, ideias libertárias e um desprezo por qualquer forma de poder ou de
autoridade, o que explica talvez, em parte, o fato de ser desbocado. De cada
cinco palavras que fala, dez são palavrões, alguns leves, outros impublicáveis.
Mas consegue operar o milagre de não ser vulgar nem pornográfico. E de
usá-los de forma apropriada, no momento preciso, em várias línguas, já que todas
elas têm um rico repertório de "obscenidades".
Concorda com Jorge Amado para quem o palavrão é apenas uma palavra,
igual a qualquer outra, que se tornou maldita e obscena por causa de
preconceitos bobos e moralistas. Porra, para ele, é uma vírgula. Aquele
xingamento da torcida do Maracanã saudando o trio de arbitragem é um ponto de
exclamação. Expressões como "fuck, man" dos ingleses
ou "va te faire foutre" dos franceses é moeda corrente, que
serve para aliviar o estresse.
Durante uma bacalhoada na semana passada, a conversa de PP se centrou
sobre sua neta de 3 anos e caqueirada, cujos pais são professores e deixam
escapar aqui e ali, quando inevitável, palavrões que não são socialmente
aceitos e que passaram a ser repetidos pela criança. Hanna, a neta de
Pepê, se encantou não só com as vírgulas, mas também com alguns substantivos
fortes e até verbos sugestivos que não ouso escrever aqui para não ferir
ouvidos pudibundos, que os há, e precisam ser respeitados.
Desbocado
Depois disso, sob o olhar irônico, mas respeitoso do velho PP, pai e mãe
decidiram policiar a própria linguagem e advertiram a filha que devia evitar
esse tipo de palavra, escolhendo outras para expressar suas emoções, embora não
concordem com o que a tia falou na creche de que palavrão é coisa de homem e
não de mulher e discordem frontalmente de uma amiga psicóloga que chegou a
diagnosticar Hanna como portadora da Síndrome de Tourette, cujo sintoma seria o
uso excessivo de palavrões.
Um dia desses Hanna estava sentada na banheira, enfrentando o calor
infernal, enquanto seu avô escovava os dentes. Começou a contar para ele uma
história que parecia não ter fim, um fato recente, cheio de idas-e-vindas, que
terminava com ela deixando cair uma garrafa de xarope espatifada no chão. Foi
vidro pra tudo quanto é lado.
- Aí, vovô, eu disse... aí, eu disse... eu disse...
- Disse o quê, Hanna?
Ela pediu então à mãe e a avó que se retirassem. Afastadas as
autoridades repressoras, quando ficou sozinha com o velho anarquista desbocado,
Hanna concluiu a história com muita propriedade, encheu a boca, saboreando as
palavras e explorando toda sua sonoridade:
- Aí, vovô, eu disse: PUTA QUE O PALIU! Puta que o paliu é palavrão, não
é pra falar, mas eu falei sem querer.
Três aninhos e pouco e já promete tanto. A mãe censurou-a porque não
queria dividir um brinquedo com uma amiguinha.
- Você não pode ser egoísta, Hanna!
- Egoísta é palavrão, não é pra falar palavrão - respondeu ela, muito
espertinha. Aliás, esperteza é o que não lhe falta. Aliás, ela aprendeu a falar
a palavra 'aliás', que emprega também na ocasião e no lugar certos. Aliás, cada
janeiro ela vem de férias do nordeste, onde mora, para o Rio. Mostra, então,
que continua fiel ao desbocamento herdado do avô. Aliás, entra hanna e sai
hanna e o velho hannarquista continua a festejar as vírgulas e exclamações da
neta.
Netarana
Contei ao avô que no Pará se emprega a palavra "netarana",
usando o sufixo tupi rana (como se fosse), indicando que os
processos de modalização do nome, característicos das línguas tupi, podem ser
também registrados em português, como indicam uma infinidade de formas assim
modalizadas: canarana, cajarana, tupinambarana, sagarana, etc. Considerei sua
neta Hanna como minha netarana. Pedi licença para contar as histórias dela aqui
no Diário do Amazonas.
Foi então que o velho Pepê me disse que havia assuntos muito mais
importantes: a guerra civil na Síria, as manifestações na Ucrânia, a violência
nas prisões do Maranhão, as fraudes no banco do Vaticano, o acordo nuclear do
Irã, o Forum de Davos, as gordas propinas pagas ao PSDB paulista, as denúncias
no Jornal Nacional dos crimes cometidos pelo prefeito de Coari Adail Pinheiro,
as maldades da Aline e a cegueira do doutor César.
Respondi-lhe com o início de um poema de Bertold Brecht, que foi traduzido
por Manuel Bandeira:
"Realmente, vivemos tempos sombrios! (...) / Que tempos
são estes, / em que é quase um delito / falar de coisas inocentes./ Pois
implica silenciar tantos horrores!".
Falar de flores e de netos é "quase" um crime, que merece uma
"quase punição"?
* Jornalista
e historiador
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