Sujeito Zero (3)
* Por Sérgio Vilas Boas
A TERRA NATAL DE SEU Edmundo
chama-se Carrancas. Nos anos quarenta era um lugarejo sem frestas para o mundo.
Nem um milhão de palitos de fósforo acesos lhe poria fogo. Ninguém por lá tinha
notícia, por exemplo, de que mais de duas décadas antes uma insurreição
chefiada por bolcheviques levara ao poder um governo russo revolucionário
encabeçado por um tal de Lênin.
O nome Carrancas decorreu das
escavações feitas por garimpeiros nas serras próximas, que acabaram formando,
para quem as reparasse de longe, duas caraças meio-humanas ainda hoje rodeadas
por tufos de vegetação densa que parecem brócolis. Mas, por uma dessas ironias
do destino, a pequena quantidade de ouro encontrada inviabilizou a cidade.
Até hoje não há um pingo de
asfalto sobre os 26 quilômetros de estrada que ligam Carrancas a Itutinga, a
cidadezinha mais próxima, que fica à beira da rodovia estadual principal.
Apesar das sucessivas derrotas da natureza para o progresso, Carrancas ainda é
ponto visível no mapa, embora continue exportando indivíduos até para
localidades decadentes.
Seu Edmundo deixou o mundo de
fininho, segundo Alma, mas na chegada não foi assim. Trovejava, lampejava,
raios perseguiam os campos, riachos inundavam, pinguelas caíam. A ponte que
ligava Carrancas à casa de Caridade Prado (mãe de Seu Edmundo) foi ultrapassada
pelas águas. Extenuada, Caridade derramava sangue sobre as “mãos de Deus”, no
dizer da parteira.
Caridade esperava gêmeos, mas só
houve tempo de salvar um. Ironicamente aconteceu de o bebê Edmundo sair
primeiro, não o outro, o que iria se chamar Alberto. Se os humanos já nascessem
com voz arbitral, Seu Edmundo teria dito “vá você, Alberto, eu fico”.
O sangue de Caridade fluía como
um rio. O recém-chegado foi posto a um canto. Enrugado, torto, careca, feinho.
Chorou copiosamente até alguém se dar conta de sua presença.
A família Prado trabalhava na
bicentenária fazenda colonial do Engenho de Dentro. Obravam de sol a sol,
preparavam comidas em fogão a lenha, produziam (e consumiam muita) cachaça
envelhecida em tonéis de carvalho, alimentavam bichos, vergastavam mulas de
carga e entendiam a orquestração dos pássaros. Os ancestrais de Alma imitavam o
naipe dos canários cabeça-de-fogo, que lhes vinham à mão.
Não muito longe da sede da
Fazenda Engenho de Dentro passava a Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM).
Desde que decidiram ampliá-la, algumas estações foram implantadas ao longo do
trajeto Lavras (MG)-Barra Mansa (RJ).
Em 1940, a ferrovia já havia sido
devorada pelo capim e pela ferrugem. As autoridades não estavam preocupadas com
o trânsito dos carranquenses. O caso é que as locomotivas a vapor precisavam de
abastecimento constante de água e lenha. Então, a vinte quilômetros da praça de
Carrancas construíram uma estação que, obviamente, não salvaria Caridade Prado
da sangria.
Sem mãe e irmão de sangue, o bebê
Edmundo acabou sendo criado por uma tia que nunca o tratou verdadeiramente como
filho. Ela achava que sustentá-lo estava muito além de suas obrigações
humanitárias católicas. Seu Edmundo tinha pavor de ser chamado de “filho de
criação”, mas a tia vivia reforçando isso.
- Não sou filho de animal! (Repetia aos prantos.) Não sou filho de
animal, sou filho de gente!
Retroativamente, pode-se imaginar
o que era ser pobre em Carrancas naquela época. As coisas da matéria e do
espírito se desdobravam em condições precárias, quero dizer, havia a iminência
da falta de tudo, mas não exatamente de comida.
***
Alma ouviu dizer que no ano de 1953 a molecada entrava pelo alçapão do
telhado carcomido do Galpão - assim era chamado o Cineteatro Municipal de
Carrancas - para assistir sem pagar às “sessões impróprias”.
Em um vão de não mais que
quarenta centímetros entre o piso e as tábuas do palco, escondiam-se do severo
Faustino, formidável conhecedor de todos os caprichos do projetor genioso. Os
meninos tinham de permanecer meia-hora enfiados naquela entranha até as luzes
se apagarem e o filme começar. Havia ainda o risco de Faustino passar por ali,
vergar as tábuas com seu peso de elefante e por acaso achatar os intrusos como
insetos. E se Faustino se lembrasse de trancar o alçapão antes da primeira
sessão ou depois da última?
Bem, nesse caso, os garotos disputavam, do lado de fora, um monóculo na
parede lateral. Com ferramentas ilícitas, já haviam aberto fendas através das
quais seus olhinhos famintos se refestelavam. O proibido exercia neles um
fascínio incontrolável.
O Galpão sucumbiu a um incêndio
suspeito. Nos anos sessenta, a cidade perdeu de vez as comédias, musicais e
chanchadas da Atlântida, como Não Adianta
Chorar e Nem Sansão Nem Dalila.
Alma visitou Carrancas várias
vezes. Em uma delas foi à Capela do Saco, dedicada a Nossa Senhora da
Conceição, feita de pedras em 1802. Seu pai contava que as pessoas que
construíram o altar da Capela viram a santa na margem do Rio Grande. O pequeno
povoado, hoje distrito de Carrancas, ficou então conhecido como Capela do Saco.
Bandeirantes paulistas da capital
e de Taubaté, rivais na disputa pelas terras férteis e pela provável abundância
de ouro às margens do Rio Grande, instalaram-se em Carrancas no início do
século XVIII. Demarcaram territórios, ergueram casas e a Igreja de Nossa
Senhora do Rio Grande, de 1721. Anos depois, com a promoção a freguesia, o
número de habitantes cresceu muito.
O folclore dos antepassados ainda
resiste à globalidade. Católicos fervorosos, os carranquenses celebram suas
tradições em folias de Reis e congadas, paixões de Cristo, festas de São
Sebastião da Estação de Carrancas, de Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora
da Conceição, exposições agropecuárias e torneios leiteiros.
De volta ao Galpão: o adolescente
Edmundo era retraído demais para invadi-lo. Ficava de longe, torcendo pelos
colegas de rua. Um dia, em seus 13 anos, topou o desafio. Afinal, uma
adolescência não podia nutrir-se apenas de planos, rotinas e ordenamentos. Era
a primeira vez que ele tomava uma decisão importante na vida. Mas, com as
calças molhadas, desistiu na hora H. Os moleques choraram de tanto rir dele.
Superados os pequenos dramas
interiores, Seu Edmundo se encantaria, am algum momento, com Floradas na Serra, Tico-Tico no Fubá e O
Cangaceiro. Mas seu preferido era Casinha
Pequenina, de Amácio Mazzaropi, talvez por reproduzir parte do viver
singular de Carrancas.
* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas
da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de
“Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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