Os santos senhores de escravos
* Por
Urariano Mota
Esta semana, foi notícia no Jornal Nacional e em todas as visões e
tevês:
O Brasil pode ter o primeiro casal de beatos. Eles viveram nos séculos
19 e 20, no Rio de Janeiro, e tiveram uma vida totalmente dedicada à igreja e à
caridade. Jerônimo de Castro Abreu Magalhães nasceu em Magé, na Baixada
Fluminense, em 1851. Zélia Pedreira Abreu Magalhães, em Niterói, no ano de
1857.
O casal era rico, dono de uma fazenda de café na época da escravidão e
eram considerados um exemplo de bondade. “Todos aqueles que os
serviam, e nesse período eram os escravos, 500 escravos, mas todos eles tinham
salários, todos eram tratados com dignidade, tinham moradia. A grande
preocupação não era acumular dinheiro”, ressalta Dom Roberto Lopes, da
Arquidiocese do Rio de Janeiro..
"A partir de agora, a história de Zélia e Jerônimo vai ficar
mais conhecida. E o casal já conquista novos devotos. Nesta primeira etapa, a
Arquidiocese do Rio vai recolher documentos e ouvir testemunhas. Depois,
encaminhar ao Vaticano. A beatificação depende de um milagre”.
Por isso não, o milagre já foi conseguido: tornaram santa a boa
escravidão no Brasil.. Amigos, não vou entrar no mérito dos processos de
beatificação em geral, para não cair em desgraça ou exibição do meu
desconhecimento sobre as vidas dos beatos e dos santos. Mas aqui, no caso
particular de Zélia e Jerônimo, saímos do capítulo da mistificação para um
crime contra a história: como é possível um processo de beatificação para
senhores escravocratas? Mais: como é possível que esse paradoxo se noticie sem
uma sombra sequer de pluma da dúvida?
Mesmo em se tratando de personagens do século XIX, de ricos senhores das
almas e corpos em fazendas de café, não podemos deixar de ver um dilema. Se
Jerônimo e Zélia algum dia fizessem um exame honesto de consciência, daqueles
exames feitos antes de uma honrada confissão, eles não poderiam fugir desta
encruzilhada: ou libertavam os seus escravos, ou eram parasitas do suor de
homens e mulheres negros. Não pode haver honra que sobreviva em um
escravocrata, por mais bem intencionado que seja. O papel que ele exerce é um
pecado sem remissão.
O interessante, como um mal sem cura, como o desenvolvimento de uma
doença, é que as tentativas de amaciamento da crueldade da escravidão no Brasil
continuam nesse processo de beatificação, com a imagem do bom senhor de
escravos. “Zélia e Jerônimo nunca tratavam seus escravos como sendo
propriedade sua, lá eles viviam em liberdade e recebiam inclusive salário”, dizem
sobre os novos santos. E mais: “o tratamento dispensado ao elevado número de
escravos que trabalhavam na Fazenda Santa Fé era tão humano que, após a
abolição da escravatura, nenhum dali saiu, aí continuando a viver e trabalhar.”
Mas como? Esse comportamento não foi único, na vontade de homens tornados
escravos também na alma, que não tinham opção: ou continuavam com seus
bondosos, ou saíam para morar na rua e viver na fome.
De uma descrição de arquitetos que visitaram a antiga fazenda Santa Fé,
a propriedade dos santos senhores de escravos, copio o trecho: “as senzalas
possuíam construções distintas para homens e mulheres.”. O que era um ato
piedoso, sem dúvida, comento aqui, pois assim evitavam a promiscuidade da
negraria no cio. E mais: “A Fazenda Santa Fé, ainda segundo Antônio
Pinto Corrêa Júnior, produzia anualmente 20 mil arrobas de café,
chegando a produzir 40 mil arrobas em alguns anos”. Agora imaginem tamanha
fortuna se construindo sob o regime de uma caridosa escravidão.
O gênio Charles Darwin no diário da sua passagem no Brasil, em 1871,
escreveu que uma vez, ele irritado, falando alto, gesticulou com a mão próxima
ao rosto de um escravo. E teve como resposta, diante de si, um homem com os
braços soltos para baixo, com a fisionomia transfigurada pelo terror, com os
olhos semicerrados, na atitude de quem esperava uma bofetada, e dela não podia
se esquivar, paralisado. E Darwin anotou: “Nunca me hei de esquecer da
vergonha, surpresa e repulsa que senti ao ver um homem tão musculoso ter medo
até de aparar um golpe, num movimento instintivo. Este indivíduo tinha sido
treinado a suportar degradação mais aviltante que a da escravidão do mais
indefeso animal”.
Agora, a Igreja deseja tornar santos dois senhores de escravos. As
pessoas de Jerônimo e Zélia, como novos Romeu e Julieta, para o conjunto de
escravocratas talvez fossem até generosas. Talvez oprimissem mais suave,
sob a doce e benevolente coerção, quem sabe, algo do gênero “se o negro
faltar à produção, papai do céu castiga”. Jerônimo e Zélia podem ter
sido até mesmo boas almas, cristãs, fervorosas. Mas santificar o casal de
escravocratas é o mesmo que santificar uma ordem injusta. Ninguém jamais foi santo
possuindo escravos.
* Escritor,
jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La
Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja
paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Também estranhei, mas não tive palavras. Ainda bem que alguém as teve, você. Será que Deus aplaudirá este gesto da Igreja?
ResponderExcluirAinda hoje existe muita escravidão no brasil, pessoas massacradas, por trabalhos com salarios miseráveis. Uma classe de empresarios que so existe nesta terra de santa cruz. "Dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos darão; porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também."
ExcluirFiquei sem saber como reagir a tamanho disparate.Como tornar santo quem viveu e morreu em pecado e ainda falar em milagre quando o Cristo parece ter abandonado esta nossa pobre terra? ainda bem que os nossos últimos Papas falam em reforma da igreja,o que ja é sem tempo,antes que os pastores milagreiros acabem com o que resta dela.
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