O gari que gosta de ler
* Por
Urariano Mota
Todas as noites, ele pode
ser visto na Avenida Rio Branco, no Recife Antigo, a ler sob a luz de uma banca
de revistas. O dono da banca, para espantar os ladrões, quando acaba o dia
deixa uma lâmpada fluorescente acesa. Isso é tudo o que pede Fábio Pereira da
Silva, que existam os ladrões e o medo do furto, porque das 7 às 8 da noite ele
recebe essa bênção. Acomodado ao chão, abre um livro e lê, concentrado e em
paz, esquecido do mundo. Isso muito me chamou a atenção. E me disse, “vou
entrevistá-lo”.
Durante a entrevista veio aquela frustração que acompanha os repórteres que
saem com a entrevista feita antes que o entrevistado abra a boca. Depois
compreendi melhor, ele é a realidade possível, e ainda assim surpreendente,
irônica, mais imaginosa que a fantasia. Vocês verão por quê. Com vocês Fábio
Pereira da Silva, 26 anos, que estudou até o terceiro ano científico.
- Você lê o quê?
- A Bíblia, a bíblia sagrada.
- Certo, a Bíblia... O que você mais gosta de ler na Bíblia?
- A Bíblia é assim um livro, a revelação de Deus...não tenho ainda aquele
assunto específico que eu pegue... Eu sou da Assembléia de Deus, de
Camaragibe.
- Muito bem ...Tem algum versículo, algum pensamento que oriente os seus
dias?
- Tem esse aqui (mostra a folha arrancada de um caderno): Romanos 6.23: “Porque
o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por
Cristo Jesus nosso Senhor."
- Quando você lê a Bíblia, você está procurando o quê nela? A salvação da sua
alma?
- Não...a Bíblia, quando a gente lê, ela é um alimento para a nossa alma...
porque Cristo uma vez disse assim, “não só do pão viverá o homem, mas de toda
palavra que sai da boca de Deus”, então ele fala que a gente, como ser humano,
que a gente carnal se alimenta do alimento material, mas a gente, porque é um
crente, quando aceita Jesus, nasce de novo, porque o homem, porque Jesus disse
que o homem tem que nascer do espírito... é um novo nascimento, quer dizer que
a gente (morre) nasce, e a gente começa a viver outra vida, a não ser essa do
mundo. O alimento para que a gente se alimente é a palavra.
- Mas você não sente falta do outro alimento, material?
- A gente precisa dos dois. O alimento espiritual, que é a palavra, e o
alimento material, que é o alimento com que a gente vive.
- E esse alimento material hoje lhe faz falta?
- Faz falta, sim...
- Que sonhos você tem para os seus próximos anos? O que você imagina ser?
- A gente quer uma vida assim boa, não é? ... Porque todo o mundo assim, é uma
vida de... é assim... você ter uma vida melhor é bom, não é? Mas assim eu
penso, de ter assim, porque é bom, não é, uma vida melhor, não é? Mas eu a cada
dia eu sigo a vontade de Deus.
- Mas o que é que você deseja para os seus próximos anos? Você se imagina gari
no futuro?
- Assim, eu nunca tive assim, algo assim, não. Eu penso em conseguir alguma
coisa melhor, de trabalho. Mas assim, uma coisa específica, sobre aquilo ... Eu
penso ter uma coisa melhor, não é? Trabalhar em outras coisas, mas exatamente a
coisa, não sei.
- Você tem vergonha de ser gari?
- No começo eu ficava um pouco meio envergonhado... até assim, as pessoas, que
às vezes olhavam para mim, porque às vezes a gente está na parada do ônibus,
tem uma mulher, homem, ficam olhando assim pra pessoa... no começo eu ainda
tive um pouco, não é?, aquela vergonha, mas agora, não.
- Que outros livros, além da Bíblia, você se interessa?
- Outros livros assim, como a Escatologia.
- Escatologia?!
- Sim, são livros que falam o futuro que Deus falou. As palavras que na Bíblia
tem, que ainda não se cumpriram, mas vão se cumprir, futuramente. Eu tenho
vontade de me aprofundar mais, ler mais isso.
- Você comprou a sua Bíblia, ou foi recebida de presente?
- Eu comprei.
- Quanto foi ela?
- Noventa e quatro reais.
- Você pagou como, à vista?
- Não, paguei no cartão, em quatro vezes.
- Este é o único livro na sua casa?
- É ... livro, é, de livro, é. Só tem assim um dicionário.
- Dicionário em casa? Que dicionário, de bolso ou grande?
- Pequeno, de bolso.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Como os evangélicos, fiquei esperando uma revelação até o fim, e não veio. Que as leituras façam crescer a linguagem e a ambição do entrevistado. Eu me decepcionei.
ResponderExcluirEnquanto os garis trabalhavam, o crente Fábio folheava suas páginas, encontrou..., esses evangélicos!!!
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