Lá longe, do outro lado
do mundo
* Por Mara Narciso
Um casamento na China de 1946 está acontecendo, e o leitor atento segue
o ritual em um país que hoje se enriquece, mas que não era assim. Ao cair nas
páginas do livro “Adeus China, o último bailarino de Mao”, de Li Cunxin, você
se encontra no meio de uma comunidade rural miserável, a comuna popular. As
mulheres têm os dedos dos pés amarrados para baixo, sobre a planta, antes dos
três anos de idade, para ficarem com pés pequenos, um valor da época, logo
proibido pelo governo. A população é imensa, devido ao incentivo natalista do
Grande Líder Mao Tse Tung, tudo é coletivo e a comida é escassa. Na família Li,
que então se formava, logo serão sete filhos.
Quando os pais de Cunxin se casaram, ambos analfabetos, foram morar numa
casa de dois cômodos, onde já viviam vinte pessoas da família do marido. A
mulher, na cultura chinesa tem menos da metade do valor de um homem. A mãe,
chamada carinhosamente de niang deu o terceiro filho para sua
irmã que não podia ser mãe e morava na casa ao lado. Niang,
pequenina, teve sorte, pois gerou sete homens. E não teve os pés amarrados na
infância, o que lhe dava uma boa mobilidade. O seu marido é chamado de o dia, pelos
filhos. Trabalhava duro noutra cidade, para a qual ia numa bicicleta velha, e
lá descarregava pesados fardos dos caminhões. Ainda assim, mal conseguia dar
comida aos filhos. Houve na década de 1960 a grande fome que matou
milhões de chineses, e a política do filho único só começou em 1978.
O trabalho da mulher era puxado, pois além dos afazeres domésticos, ia
para a lavoura coletiva. Conseguir alimento era um drama permanente, assim como
a busca de água, o combate aos piolhos, e o convívio com as fezes humanas,
abundantes, usadas como fertilizante, que empesteava toda a comunidade. No inverno
rigoroso, com neve, niang, que não tinha máquina de costura,
fazia roupas pesadas a mão para toda a família, lavava, cozinhava, limpava e
plantava. Todos tinham a obrigação de plantar, além de decorar os ensinamentos
do Livro Vermelho. As condições de vida eram rudimentares, e para sobreviver
era preciso trabalhar feito escravo.
Uma infância miserável não é necessariamente uma infância infeliz.
Cunxin segue a tradição oriental de colocar o sobrenome, ou nome de família,
antes do nome próprio. Nasceu em 26 de janeiro de 1961, perto de Qingdao, na
província de Shandong, sendo o sexto irmão, costume entre eles de se autonomear
ordinalmente. O seu precioso relato é muito mais que uma autobiografia. É uma
caminhada sociocultural pela China, na qual vemos o esforço da população para
não morrer, manter suas crenças e não questionar sobre liberdade. O regime
comunista mentia sobre a condição do povo e do país. O Deus deles era o Grande
Líder, e não praticavam religião alguma, exceto o culto aos idosos e aos mortos,
pois ter fé era proibido.
A casa antiga de alvenaria era apertada, com dois cômodos. A mãe
cozinhava com carvão, aceso com um sistema de fole, que enchia a casa de
fumaça. Havia pouca água para o trabalho doméstico e menos ainda para o banho.
Dormiam na mesma cama, uns para cima e outros para baixo, com os pés no rosto
uns dos outros. Niang se deitava em um lado da cama, mas no
dia seguinte procurava os seus grampos de cabelo onde dormia o dia.
As crianças ficavam se perguntando o motivo. Elas também trabalhavam acionando
o fole, catando carvão já queimado ou plantando, e iam à escola.
Aos onze anos, por puro acaso, Cunxin foi escolhido, por sugestão de uma
professora, e levado pelo regime comunista para uma escola de balé em Pequim, a
Academia de Dança de Madame Mao. No começo, ele detestava a dança, mas se
animava com o conforto das instalações, uma cama para cada um, a comida, e o
professor Xiao, que muito o incentivou, lançando-lhe desafios. Suportava tudo,
pois em casa, estava acostumado a comer inhame seco, em escassa quantidade
todos os dias, detalhe repetido à exaustão, para não deixar dúvida do que seja
uma dieta de fome. Havia dias em que, não havendo inhame para todos, o pai
desculpava-se, dizendo ter almoçado bem no trabalho. Mas niang o
obrigava a comer pelo menos um pouco, pois ele era a segurança de sua numerosa
família.
As garras do regime e a prisão do pensamento assombram o mundo
permissivo de hoje. Fica-se a imaginar o que um menino de onze anos sentiu ao
ser arrancado da sua família para servir ao país, privando-se da presença dos
pais e irmãos, que, apesar das restrições, são elogiados. A evolução do balé de
Cunxim, até ele se tornar o melhor bailarino do grupo, é uma viagem
ultraobsessiva de coragem e loucura quase suicida.
Tudo muda mais uma vez quando Cunxim consegue permissão para fazer um curso avançado de balé de seis semanas nos Estados Unidos, junto com outros bailarinos. O choque cultural é explosivo para ele, que fica estupefato, pois o regime comunista ensina que a China é rica e os Estados Unidos são pobres. A riqueza do país, a tecnologia, a liberdade e o excesso de comida deixam Cunxin extasiado. A viagem é um sucesso, e acaba surgindo uma segunda oportunidade de viajar.
A organização das comunas da era Mao Tse Tung são arduamente detalhadas,
com a ajuda de duas editoras e de personagens da história, gerando um livro
magnífico. “Adeus China” é muito mais que uma viagem à China de Mao até os dias
de hoje, é uma crítica ao regime, um elogio à cultura ocidental e uma oração à
dança, que deu tudo ao autor, um objetivo, uma vida, duas esposas e três
filhos. O exuberante relato deste chinês, cuja obstinação o coloca
invariavelmente fora do gráfico, precisa ser cultuado com atenção. Torna-se um
bailarino conhecido internacionalmente, dançando em louvor da sua amada China,
galgando os píncaros da sua arriscada profissão, na qual um erro pode
significar a morte. Para pasmo dos seus espectadores e para nossa apreciação,
em 400 páginas.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Parece ser um ótimo livro, Mara. Sua resenha aviva a curiosidade sobre esse mundo à parte. Abraços.
ResponderExcluirSoube que há um filme muito bom, o qual vou procurar para ver nele, segundo me disseram, os treinos ultrarrepetitivos até atingir a perfeição. Obrigada, Marcelo!
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