sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Tardio reencontro

* Por Cecília França


Rute e Antonio estavam sem reação desde que aquele homem sisudo, extremamente enrugado e de esparsa cabeleira branca entrara na sala. A mãe curtira intensamente sua viuvez durante os últimos vinte anos e jamais dera pistas sobre um outro amor – posterior à morte do marido ou de juventude. A princípio, pensaram se tratar de um curioso, hipótese que descartaram momentos depois.

Entrou apoiado à bengala como quem se segura a um grande amigo. A despeito do corpo descorado e inseguro, ingressou rapidamente na Casa Funerária, a fim de exterminar logo a dúvida que o atormentava desde a noite anterior. Por 45 anos não a viu, mas estava certo de que a reconheceria por um simples detalhe.

Ao se aproximar, teve certeza de que as mãos que agora estavam postas sobre o peito murcho e cansado daquela senhora eram as que ele tanto acariciara na juventude. Pôde então reconhecer todos os outros traços do rosto ainda belo – embora levemente desfigurado – daquela que amara com tamanho afinco que sua covardia o impossibilitara de revelar.

Nunca viveram nada de concreto a que pudesse se apegar como consolo na solitária velhice. Curtira a libertinagem até quando suas pernas sustentaram o peso de seu corpo e das centenas de mulheres que pagava para lhe dar prazer; enquanto ela, em sua distante meiguice, vivia um romance verdadeiro.

Morrera de causas naturais, como era privilégio dos bons. Ele tomara conhecimento pelo jornal, na coluna dos mortos que tanto desprezara fazer durante o tempo de trabalho no extinto Diário Matinal, considerando-a banal. Recortou a parte em que se lia JÚLIA SANCHES, colocou o pequeno papel no bolso e pôs-se em direção à funerária tão logo amanheceu.

Deixou para trás uma casa pequena e desarrumada, com louças e roupas para lavar, para a qual sabia que não retornaria. Naquele momento, ao lado do caixão, reviveu lembranças que não eram suas – beijos, casamento, filhos, casa arrumada – e, pela primeira vez, chorou. Não se lembrava de já haver soluçado como naquela hora em que constatava a sua vivência sem propósito.

As lágrimas caíam sobre o fino voal e alcançavam o corpo intocado de sua única amada – não amante. Permaneceu ali por alguns minutos, sem que alguém tivesse coragem suficiente para pedir que saísse, e derramou lágrimas de uma vida toda.

Sempre creditara sua desilusão à fatalidade da vida, destino, ou algo semelhante; chorava agora por constatar que, na verdade, escrevera sua biografia com letras tortas e ilegíveis para olhos já senis. Retirou-se com a mesma fugacidade com que entrou na sala e deixou um rastro de dúvida e confusão nos presentes. No dia seguinte, seria o seu nome na coluna que outrora considerara inútil.


* Jornalista

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