Tardio reencontro
* Por Cecília França
Rute e Antonio estavam sem reação
desde que aquele homem sisudo, extremamente enrugado e de esparsa cabeleira
branca entrara na sala. A mãe curtira intensamente sua viuvez durante os
últimos vinte anos e jamais dera pistas sobre um outro amor – posterior à morte
do marido ou de juventude. A princípio, pensaram se tratar de um curioso,
hipótese que descartaram momentos depois.
Entrou apoiado à bengala como
quem se segura a um grande amigo. A despeito do corpo descorado e inseguro,
ingressou rapidamente na Casa Funerária, a fim de exterminar logo a dúvida que
o atormentava desde a noite anterior. Por 45 anos não a viu, mas estava certo
de que a reconheceria por um simples detalhe.
Ao se aproximar, teve certeza de
que as mãos que agora estavam postas sobre o peito murcho e cansado daquela
senhora eram as que ele tanto acariciara na juventude. Pôde então reconhecer
todos os outros traços do rosto ainda belo – embora levemente desfigurado – daquela
que amara com tamanho afinco que sua covardia o impossibilitara de revelar.
Nunca viveram nada de concreto a
que pudesse se apegar como consolo na solitária velhice. Curtira a libertinagem
até quando suas pernas sustentaram o peso de seu corpo e das centenas de
mulheres que pagava para lhe dar prazer; enquanto ela, em sua distante
meiguice, vivia um romance verdadeiro.
Morrera de causas naturais, como
era privilégio dos bons. Ele tomara conhecimento pelo jornal, na coluna dos
mortos que tanto desprezara fazer durante o tempo de trabalho no extinto Diário
Matinal, considerando-a banal. Recortou a parte em que se lia JÚLIA SANCHES,
colocou o pequeno papel no bolso e pôs-se em direção à funerária tão logo
amanheceu.
Deixou para trás uma casa pequena
e desarrumada, com louças e roupas para lavar, para a qual sabia que não
retornaria. Naquele momento, ao lado do caixão, reviveu lembranças que não eram
suas – beijos, casamento, filhos, casa arrumada – e, pela primeira vez, chorou.
Não se lembrava de já haver soluçado como naquela hora em que constatava a sua
vivência sem propósito.
As lágrimas caíam sobre o fino
voal e alcançavam o corpo intocado de sua única amada – não amante. Permaneceu
ali por alguns minutos, sem que alguém tivesse coragem suficiente para pedir
que saísse, e derramou lágrimas de uma vida toda.
Sempre creditara sua desilusão à
fatalidade da vida, destino, ou algo semelhante; chorava agora por constatar
que, na verdade, escrevera sua biografia com letras tortas e ilegíveis para
olhos já senis. Retirou-se com a mesma fugacidade com que entrou na sala e
deixou um rastro de dúvida e confusão nos presentes. No dia seguinte, seria o
seu nome na coluna que outrora considerara inútil.
* Jornalista
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