Fios emaranhados
* Por
Cecília Prada
Hoje quero escrever uma
coisa assim, de fios. Dos fios detectados, dos que nos sustentam. Fantoches
somos na mão invisível de alguém que nos manipula? Ou, simplesmente, falar dos
múltiplos fios em que estamos todos enrolados, na imensa rede que não foi
inventada pela indústria da comunicação virtual, como se poderia pensar numa
simplificação – mas na enorme rede da vida. Pior: do cosmo. E nós, pobres
fiozinhos atormentados e complicados no nosso emaranhamento, temos a pretensão
de querer entender, desenrolar. Enfim ridículas formiguinhas.
Anos atrás inventei a
pretensão de contar minha vida, para entendê-la um pouco. Se fracassei quanto
ao livro pronto, amontoei quilômetros de entulho literário feito de coisas e
loisas, e amores e desamores, e desesperos e retemperos, material que está todo
por aí, pelas gavetas dos móveis, do micro, do Ser – um dia será amarrado em
pacote, espero, e definitivamente selado e entregue.
Enquanto isso, indago
consistente: que fio afinal usarei para amarrar esse pacote de mim? Que fios
usarei para bordar a eterna tapeçaria que nós mulheres tecemos desde aquela
nossa protoavó Penélope para deixar em legado à família? – para que em mim não
se cumpra o destino das mulheres silenciadas, tias-avós de diários bolorentos
jogados fora pelo primeiro sobrinho aparecido após o enterro, versos escritos
com aplicada letra de curso primário, indefectíveis rosas secas dentro de um
livro esmaecido, e os murmúrios, e os lamentos que ressoam em todos os haréns,
em todas as salas de todas as famílias.
Ou simplesmente
morrerei de boca costurada, como foi durante tanto tempo o destino das mães e
avós loucas?
Mas não é fácil contar
essa história um tanto estranha, feita de tantos pedaços, e confesso. Não é
fácil costurar seus elementos – que linha usarei, pois?
A linha da
mediocridade, comprada na feira, parda e resistente, que minha avó italiana
usava para cerzir eternamente, num ovo de madeira, as meias da família? Minha
avó que nunca falava, que morreu silenciosamente aos 97 anos, doce e apagada
velhinha de cabelos de algodão e olhos azuis.
A linha triste e
discreta com que me costuraram os botões do uniforme azul-marinho do externato
de freiras? Ou talvez eu deva escolher, por que não? Algum dos fios mais
brilhantes que me foram concedidos pela vida, tons rosa-salmão do meu primeiro
vestido de baile? Ou o fio de cetim imaculado do vestido de noiva? Ricas
nuanças de tapeçarias medievais? (não fui por acaso castelã e prisioneira?) Ou
espargir pelo meu livro as cores, nunca reveladas, daquela imensa,
interminável, milenar tapeçaria que nossa protoavó Pènélope desdobrou sobre
toda a humanidade? – e cujo risco ninguém, nunca, se preocupou em saber qual
era...
Não,
Já sei, Usarei, para tão digno bordado, aquele fio de seda mista que as freiras
já no primeiro ano primário queriam nos obrigar a usar, com paciência nos
adeguando para exigências da vida: enfiar, e enfiar de novo, e mais uma vez, e
sempre, uma linha enfezada e resistente na agulha fina de buraco que se
esquivava manhoso em um trabalho de amostras de pontos de bordado, um paninho
de linho branco que se queria – como tudo para nós – puro, imaculado. E que só
eu, a menina má, amarfanhada num canto da pasta, retirando-o de má vontade,
medrosa, na hora de trabalhos manuais. E minha linha, só a minha, parecia se
obstinar em criar nós e complicações. (Como estas urdidas – ardidas? – memórias
de hoje.)
Irmã Louise,
vermelhona, de pelos no rosto, me dizendo, vidente, talvez: “Mas isto não é
mostruário. É um monstruário.”
Teria ela realmente
seus dons? Veria já no paninho encardido, sujo de tinta, vergonhoso, de linhas
emaranhadas, alguns lagartos, das serpentes, das complicações existenciais em
que eu me veria mais tarde colhida?
Segredo: ah, no meio do
pano encardido bordei uma tosca florzinha inventada, com linhas gloriosamente
espalhafatosas, azul-real, verde-pavão, vermelho-sangue. Depois disse para a freira
que tinha perdido meu pano de amostras – que me dessem outro, talvez tenham me
dado, nem me lembro o que aconteceu com ele. Mas a aprendiz de bordadeira
seguiu e segue vida afora emaranhada na teimosia de tantos nós, tantas linhas
enfezadas alinhavando pontos impossíveis – tentando lembrar qual era aquela
flor inventada com todos os tons brilhantes da esperança, um dia.
* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como
jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de
Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo.
É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos
publicados, dentre os quais: O caos na
sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de
vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas
estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de
carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações
Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.
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