A edição inesquecível
* Por Pedro J.
Bondaczuk
O bom jornalismo – o que vale a pena fazer por respeitar a
inteligência do leitor – caracteriza-se, sobretudo, pela imparcialidade,
isenção, precisão e absoluta veracidade dos fatos noticiados. Por isso, recomenda-se
que seus principais agentes, em especial repórteres e editores, não tenham
qualquer espécie de envolvimento emocional, ou de interesse pessoal no que
noticiem. Ou seja, que deixem a emoção em casa (como se isso fosse possível) e
atuem com absoluta objetividade no exercício da sua função. Pelo menos, é o que
ditam os melhores manuais de redação que circulam por aí. Certo? Depende!
Pode até ser que tudo isso seja o ideal (provavelmente é).
Mas seria possível (pelo menos sempre)? O jornalista é, evidentemente, como
todas as pessoas do mundo, movido a emoções e interesses. É sujeito a
determinadas circunstâncias que não pode evitar ou (muito menos) fugir delas.
Não é máquina, como alguns editores-chefes parecem pensar, que possa ser
programada para executar determinada tarefa, de forma mecânica, rigorosamente
dentro do programado. Embora isso seja óbvio, nem todos entendem as coisas
dessa maneira.
Todo editor veterano tem, em seu portfólio profissional,
diversas edições que considera inesquecíveis: ou pela relevância dos fatos
relatados, ou pelas circunstâncias que as cercaram, ou por qualquer outro
motivo (e se subjetivo ou objetivo não importa). Claro que nestas quatro
décadas de janela, tive, também, as minhas. E não foram poucas.
Quando editava política internacional, por exemplo, posso
citar como edições marcantes, por serem históricas, as dos atentados contra o
papa João Paulo II e, tempos depois, contra Ronald Reagan. A primeira guerra do
Golfo, por sua vez, valeu-me, inclusive, importantes prêmios jornalísticos e se
constituiu num marco para o jornal em que trabalhava, o Correio Popular, que
aproveitou a ocasião para lançar fotos em cores em todas as suas páginas.
Ainda nessa editoria, posso citar, assim de passagem, sem
dar muitos tratos à memória, como momentos marcantes na carreira, os
assassinatos de Indira Gandhi e, posteriormente, de seu filho Rajiv, na Índia;
o golpe frustrado contra Mikhail Gorbachev, na antiga URSS; a desintegração da
União Soviética; a queda do Muro de Berlim; a reunificação da Alemanha; o
desmantelamento sangrento da Iugoslávia; a morte da princesa Diana, seguida da
de Madre Teresa de Calcutá, e tantas e tantas e tantas outras jornadas, tidas
pelos meus superiores (e, principalmente, pelos meus generosos leitores) como
notáveis.
Em outras editorias em que trabalhei, também tive edições
inesquecíveis. Em economia, por exemplo, creio ter feito um trabalho soberbo
com os planos Cruzado, Verão e Real; com o confisco da poupança anunciado pela
ministra Zélia Cardoso e com a moratória da dívida externa brasileira.
Em política, citaria o impeachment de Collor e o caso dos
Anões do Orçamento, além do assassinato de PC Farias e de tudo o que o cercou.
No Caderno C, de Artes e Variedades, destaco as edições das mortes de Ellis
Regina e de Tom Jobim, entre tantas outras. E no Esporte, a co-edição dos
cadernos especiais das Copas do Mundo de 1994 e de 1998 e da morte de Ayrton
Senna. Fiz, também, algumas capas que foram consideradas obras-primas de
edição, no pouco tempo em que fui editor da Primeira Página do Correio Popular.
São trabalhos dos quais, sem dúvida, me orgulho e que nunca irei esquecer. Nem
poderia. Marcaram e valorizaram minha carreira.
Todavia, minha “edição inesquecível número um”, a que põe,
com folga, todas as citadas acima no chinelo – porque feita nos limites da
minha emoção, que fiz chorando copiosa e convulsivamente, e que nem sei como
consegui concluir – foi a da morte de uma pessoa que aprendi a gostar e a
admirar ao longo de uma curta, mas profunda convivência profissional.
Relutei muito antes de fazer a confidência que se segue.
Sei que corro o risco de ser mal-interpretado e deste texto vir a ser
considerado “piegas” (infelizmente, nestes tempos medíocres e violentos que
vivemos, emoções sadias são interpretadas, por pessoas amargas e infelizes,
como “pieguice”). Talvez até o seja. Mas devo este relato à memória dessa
figura tão especial (e saudosa), que teve a vida ceifada tão prematuramente,
pondo fim, abruptamente, a uma carreira jornalística que tinha tudo para ser
das mais brilhantes e vitoriosas.
Em 1997, após conquistar um merecido Prêmio Esso, o
Correio Popular resolveu fazer um jornal ainda melhor do que já fazia e que lhe
valera tão honrosa premiação. Seria mais organizado, mais volumoso e, sobretudo,
mais bonito. O objetivo principal, porém, era o de facilitar a leitura.
Tratou-se da culminância de um longo e meticuloso planejamento, de uma grande e
afinada equipe, que havia visitado, inclusive, vários jornais do exterior,
notadamente da Europa. Partiu-se para a chamada “cadernelização”.
O caderno de Cidades, editoria tida e havida como das mais
importantes em qualquer jornal que se preze, por tratar de notícias locais,
daquelas que ocorrem na localidade em que ele tem sua sede, por razões industriais,
tinha que fechar, impreterivelmente, às 18 horas. Esse deadline apertado,
contudo, abriu perigosas e incômodas brechas para o concorrente deitar e rolar,
acumulando furos e mais furos noticiosos sobre nós.
Para sanar essa deficiência, o Conselho Editorial decidiu
criar uma nova editoria. Foi intitulada, simplesmente, de “Últimas”. Dispunha
de pouco espaço e de imensa abrangência. Sua finalidade era a de noticiar tudo,
absolutamente tudo o que ocorresse de importante em Campinas, quer na área política,
quer na policial, na de esportes, na de artes etc., após o fechamento das
respectivas editorias. Era a única seção do jornal autorizada a fechar depois
da Primeira Página. Ainda assim, seu deadline era apertadíssimo e não se
toleravam atrasos sequer de segundos.
O editor, os repórteres e fotógrafos dessa editoria,
portanto, teriam que ser sumamente ágeis, eficientes e atentos para cumprir o
horário e ainda assim não levar nenhum furo e muito menos comprometer a
qualidade. Coube-me essa árdua e indigesta tarefa. Mas também me foi dada a
prerrogativa da escolha das pessoas que eu queria ao meu lado. Entre os
repórteres de Cidades que me foram oferecidos, havia alguns de muita
experiência, com passagens por grandes jornais de São Paulo e do Rio de
Janeiro. Optei, todavia, por uma baixinha elétrica, agitada, brigona (no bom
sentido), embora de texto não tão bom como os demais. Era a Luíza Fonseca.
Quem não nos conhecesse, acharia que nos odiávamos.
Passávamos noites e mais noites trocando farpas, discutindo, invariavelmente, a
cada edição, dopados de adrenalina, como exigiam as respectivas funções que
ocupávamos: ela reclamando do pequeno número de linhas que eu lhe destinava
para as suas matérias. Eu, cobrando agilidade, eficiência e correção dos
textos. Mas o resultado do nosso trabalho logo saltou aos olhos. Modéstia a
parte, era impecável. Na verdade, tínhamos um mútuo respeito profissional. Mais
do que isso, um afeto de dois irmãos, desses muito ligados um ao outro, nos
unia. Um confiava cegamente no outro, a despeito das mútuas queixas e
recriminações (que eram só da boca para fora).
A Luiza apaixonou-se por um colega de serviço, da área de
informática do jornal, namorou com ele, casou-se e não tardou a engravidar.
Embora, para preservá-la, eu quisesse transferi-la para outra editoria, que lhe
exigisse menos esforço, ela não aceitou. E tanto falou em meus ouvidos, que
resolvi mantê-la na função. Mas sem lhe dar o mínimo refresco. E a valente
repórter trabalhou até dias antes do parto, com entusiasmo crescente e sem
atrasar uma só matéria pautada e nem levar o mínimo furo. Era um azougue!
Após dar a luz, fato recebido com festa por toda a
redação, eis que pinta uma tragédia. Um traiçoeiro aneurisma cerebral estourou
e... Luíza morreu, uma semana após o nascimento de sua filha. Fiquei em estado
de choque! Solicitei licença à direção do jornal, que me foi negada, sem qualquer
explicação. Pior: decidiu-se que seria feita uma matéria especial, a ser
publicada com grande destaque, e justo na minha (ou melhor, na nossa) editoria.
Roguei, insisti, ameacei e tentei de tudo para que outro editor me substituísse
na tarefa. Não adiantou. Coube-me a dificílima incumbência dessa edição.
Até hoje, não sei como consegui concluir a tarefa. Foi
como se estivesse em
transe. As lembranças desse dia ainda estão muito confusas em
minha mente. Só me recordo que meus olhos estavam embaçados pelas lágrimas, que
me escorriam, abundantes, pelo rosto e pingavam em meu peito. Não conseguia,
por mais que tentasse, ler o texto, redigido por um dos melhores repórteres do
jornal, sobre a trajetória profissional da Luiza: objetivo, sóbrio e ponderado,
sem deixar de realçar os méritos da querida amiga (conforme constatei, tempos
depois).
Se contivesse erros, estes sairiam, fatalmente, na edição.
Eu não tinha a menor condição psicológica (e sequer física) de revisar e editar
o que quer que fosse, quanto mais essa matéria específica, sobre uma
companheira de trabalho com quem tinha tão fortes laços de amizade e de
admiração (diria, de cumplicidade). Houve, no entanto, unanimidade no jornal:
todos, do diretor ao porteiro, consideraram essa a melhor edição que fiz nos
vinte anos que trabalhei no Correio Popular. Pudera! Foi feita com garra, com
lágrimas e com intensíssima e incontrolável emoção. Afinal, como dizem os
artistas (notadamente os de teatro): haja o que houver, o espetáculo tem que
continuar! No jornalismo, como se vê, essa máxima também prevalece.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Que maravilhosa confissão! Deu para sentir a celeridade da finalização da edição. Pois se mantivesse suas decisão de não nos contar essa passagem, ficaria uma brecha na sua história, se não, para nós, que não saberíamos, certamente para você, que não deixaria de pensar nela.
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