Hoje vai ter marmelada?
* Por Fernando Yanmar Narciso
Nos seus 30 anos de
existência o MMA- ou rinha humana, como denominam os mais conservadores- se
acostumou a sofrer constantes baixas, como a perna quebrada por acidente de
Anderson Silva e algumas mortes durante as lutas. Há quem venda a imagem dos
lutadores de MMA como versões modernas dos gladiadores que encharcavam o
Coliseu de sangue e vísceras, para deleite de um imperador e seu sádico povo.
Alguns “puritanos” um tanto desocupados passaram a tratar as mortes no octógono
como uma estatística, e com isso tentam proibir o dito esporte selvagem no
país.
A mãe de todas as
ironias é que, enquanto essa gente tenta tirar do ar um esporte onde os caras
recebem milhões para se triturarem, há mais ou menos sete anos a boa e velha
luta livre circense, que animava nossos pais e avós desde a década de 60, foi
banida da TV aberta. Em sua mais recente exibição, nas tardes de sábado no SBT,
o esporte foi tirado ar depois de apenas três meses. Quer dizer, um esporte
circense centenário, onde dois marmanjos trocam socos “de mentirinha”, é
considerado um mau exemplo pros nossos pimpolhos enquanto o outro, legítimo e
letal, é venerado a ponto de estarem tentando levá-lo aos Jogos Olímpicos de
2020? Santa incoerência, Batman!
No início da televisão
no Brasil, cada canal tinha seu campeonato de marmelada, sendo o Telecatch
Montilla o mais famoso, líder de audiência na Vênus Platinada por dois anos. O
italiano Mário “Ted Boy” Marino, morto em 2012, foi o grande herói da luta
livre brasileira, com seu cabelo loiro cortado à moda dos Beatles e persona
inspirada em James Dean. Em seus últimos anos de vida foi um ferrenho oponente
à selvageria e falta de honra nos combates de MMA, mas o engraçado é que, ao
passo que a luta livre vem tentando se apossar da legitimidade e do realismo do
vale-tudo, os gladiadores de bermuda e luvas do outro esporte parecem vir
copiando cada vez mais as firulas e palhaçadas dos lutadores do gênero rival.
Enquanto na década de
80 o gênero perdia prestígio no Brasil, nos Estados Unidos, a luta livre
tornou-se um fenômeno da cultura popular, graças principalmente a dois
vigaristas de quem vocês provavelmente já ouviram falar, o promotor Vince Mc
Mahon e Terry “Hulk Hogan” Bollea, o mais icônico lutador da história.
Incrivelmente carismático, mas pouco habilidoso no ringue, Mc Mahon
aproximou-se de Bollea em 1983 para transformar o brutamontes calvo e bigodudo
no grande herói do país e carro-chefe de sua empresa, capaz de sobreviver a uma
casa despencando em cima dele e tomar as maiores surras só para virar a mesa
nos últimos dois minutos da luta à La Rocky Balboa e posar para os fãs. Seu
reinado como maior ídolo do esporte atravessou quase duas décadas.
Vince, ao herdar a
empresa WWF de seu pai, hoje WWE, a reestruturou ao redor de Hogan, meio que
esquecendo o lado esportivo do gênero e apostando mais no lado do
entretenimento, povoando seus shows com caricaturas exageradas e espalhafatosas
do melhor e do pior que a humanidade tem a oferecer. Apesar de estar hoje com
60 anos e praticamente aposentado, a galera ainda vai ao delírio ao ver Mr.
Bollea entrar de moto no estádio e rasgar a camisa ao subir no ringue- o que
ele recentemente confessou ser um truque de mágica. Mesmo sendo usuário
assumido de anabolizantes e drogas pesadas, Hulk Hogan posava de bom escoteiro
e ensinava as criancinhas ingênuas a “praticar esportes, tomar vitaminas, rezar
bastante, ser fiel a si mesmo e à família”, em outras palavras, viver o
American Dream.
Por volta de 1995, a
saudosa Rede Manchete começou a passar nas tardes de sábado os espetáculos da
WWF, com a narração de Carlos Valadares e Bob Léo. Porém, nessa época Vince já
não contava com a presença de Hogan e tampouco com a maioria de seus atletas da
década anterior, a empresa estava praticamente falida. Por isso os shows que
chegavam aqui mais pareciam episódios ao vivo dos Changeman, com samurais,
lutadores de sumô, palhaços, ciborgues, garis, fazendeiros, feiticeiros
africanos, gente fantasiada de touro... Ou seja, era um programa que só
crianças conseguiam assistir e adultos adoravam debochar.
De lá pra cá, o gênero
passou por inúmeros altos e baixos. Já não dá mais pro caboclo subir na lona
parecendo uma mistura de Stallone com Chacrinha e Lady Gaga e esperar ser
respeitado pelo público. Claro que os lutadores se apresentam com cartas
marcadas e o vencedor já definido, mas enganam-se os que pensam que no Catch os
atletas nunca se ferem pra valer. Alguns deles entram tanto no personagem que
fazem de suas encenações verdadeiras missões suicidas, com quase tantos ossos
quebrados, contusões e carreiras encerradas prematuramente como em qualquer
esporte de contato. Houve, inclusive, uma curta fase de luta livre ultrarrealista
no início do milênio, repleta de obscenidades, sadismo, armas, sangue, arame
farpado e concertina no lugar das cordas do ringue. Fase essa que foi
ironicamente a mais lucrativa dos negócios de Mc Mahon. Oh, a humanidade...
“Mankind” Mick Foley, um
dos maiores ídolos daquela época, é provavelmente o homem mais assustador já
nascido: Numa famosa luta dentro de uma gaiola em 1998, foi arremessado do topo
dela sobre a mesa dos comentaristas, jogado ATRAVÉS da gaiola, deslocou o
ombro, arrancou um pedaço do lábio com os dentes, perdeu a sensibilidade das
mãos, rasgou uma orelha, teve um rim deslocado, um dente arrancado e
atravessado no nariz, o corpo coberto de tachinhas, foi nocauteado DE VERDADE
não uma, mas TRÊS vezes... E ainda saiu do estádio andando, todo ensanguentado,
como se não tivesse acontecido nada! E o esporte de Foley que é o de
brincadeirinha! Dá até vontade de rir das fraturinhas do futebol e da perninha
quebrada do Anderson.
*Designer
e escritor. Sites:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
http://cyberyanmar.deviantart.com/
HTTP://www.facebook.com/terradeexcluidos
Descrição mais autêntica do que a luta em si. Boa leitura.
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