América Latina – fim de um ciclo
* Por
Elaine Tavares
Ao se completarem dez meses da morte de Hugo Chávez, o panorama que se
vislumbra na América Latina é desanimador. A Venezuela “cria cuervos”, agarrada
com a elite financeira do país que põe a economia no chão. O Equador se rende
as mineradoras e aos ditames do Banco Mundial. O Brasil, que nunca chegou a
trilhar os caminhos do socialismo, cada vez mais mergulha no pragmatismo do
negócio. Países da América Central que estavam inclinados a uma parceria com a
Venezuela também se desviam. A Bolívia, apesar de forte influência indígena,
igualmente vai se rendendo às grandes empresas privadas, que formam um perigoso
poder no país. O Uruguai, que tem sido a estrela da vez, avança em reformas que
muito pouco mudam a estrutura do sistema de governo. Ao que parece, a era das
transformações está encerrada e o caminho para o socialismo, que era uma
promessa do líder venezuelano, está, por hora, interrompido. Como era de se
esperar, o desaparecimento de Chávez foi também o desaparecimento do motor
teórico do processo “revolucionário” que começou com a chegada desse militar
incomum ao poder em 1998.
Quando Chávez chegou à presidência da Venezuela o mundo estava então
dominado pelo pensamento neoliberal. Parecia não haver saída desse labirinto de
pensamento único. Na América Latina apenas Cuba seguia resistindo, e o
presidente venezuelano entrou no cenário com um discurso duro contra o
imperialismo e o capital. No princípio foi tratado como um anacronismo, uma
falha na matrix que logo seria extirpada. Mas, no tecido social completamente
roto da Venezuela a proposta de Chávez cresceu, tomou corpo e se encarnou na
maioria da população desde sempre empobrecida. Ele prometia uma revolução
bolivariana, amarrada ao ideário do famoso conterrâneo que liderou as grandes guerras
de independência da parte norte e leste da América Latina: Bolívar. E o que é o
bolivarianismo? Um sistema de governo que tem como plataforma a educação
gratuita para todos, soberania, fim do colonialismo político, econômico e
cultural, unidade dos países latino-americanos, fim da dependência.
E foi esse sendero que o governo de Chávez foi abrindo por entre as
veias da América Latina. Seu discurso forte, seu carisma e, fundamentalmente
suas ações, guinaram a Venezuela à esquerda e, com ela, começaram a girar
também outros países. O Equador, depois de fortes rebeliões indígenas, foi
buscando um caminho soberano. A Bolívia, igualmente derrubou presidentes, ardeu
em rebelião e apontou novos horizontes, inauditos. Veio uma nova Constituição
na Venezuela, participativa, desde baixo. Outro duro golpe no pensamento
neoliberal, no modelo ocidental, burguês. Institucionaliza-se o poder popular,
coisa inédita nestes confins. Anunciam-se revoluções bolivarianas, cidadãs,
culturais. O imperialismo atacou, deu golpe, mas foi derrotado pela massa que
já não estava mais excluída da participação. Chávez voltou fortalecido, passou
por novas eleições, sempre vencendo. Dia a dia ele falava com seu povo, lia
livros, editava outros tantos, orientava estudos. Não era um bravateiro sem
estofo. Sabia o que dizia e o que estava fazendo. Não era ainda o socialismo.
No máximo, um capitalismo de estado, mas prometia avançar para além. E
caminhava.
Na esteira das mudanças venezuelanas a Bolívia também mudou. Elegeu Evo
Morales, das fileiras indígenas e sindicais, construiu de forma participativa e
popular uma nova Constituição, criou um estado Plurinacional, avançou na
participação, fez assomar a cultura originária, maioria no país. O Equador
seguiu o mesmo diapasão. Nova Constituição, outorgou direitos à natureza,
estado pluricultural. Abriu espaço para novos pensares, mais além do
socialismo: o sumak kausay, uma forma de organizar a vida embasada em conceitos
autóctones, dos povos antigos, coisa completamente nova para quem acreditava
que o modelo europeu era o único possível.
A América Latina entrou no novo milênio ardendo em novidade e
transformação. Quando alguém fraquejava, lá vinha o Chávez com sua voz de
trovão, puxando o timão mais à esquerda. E mesmo quando ele mesmo claudicava,
ou cedia ao “possível”, buscava nos autores revolucionários, nos heróis do
passado, a inspiração para reavaliar e avançar. E, assim, esses três
países em especial (Venezuela, Bolívia e Equador) começaram a realizar algumas
mudanças que finalmente mexiam nas estruturas. Outros, como o Brasil, a
Argentina, a Nicarágua, Honduras, Paraguai, Uruguai, principiaram a realizar
reformas e a amparar pelo menos alguns pontos do bolivarianismo, como a ideia
de soberania e união latino-americana.
Quando, no mês de março de 2013, o câncer venceu o comandante, as coisas
já não andavam bem. Na Venezuela era possível observar a subida da inflação e a
opção do governo por uma aliança com o setor financeiro. O país não conseguia
avançar no caminho do desenvolvimento endógeno, atropelado que fora ano após
ano por golpes, contragolpes e ações desestabilizadoras da direita. Apesar de
todos os esforços empreendidos, o rentismo petroleiro ainda era o carro chefe
da economia do país. A produção - de comida e de outros produtos de uso
corrente - não deslanchou. Continuava mais vantajoso ao empresariado nacional
seguir com a importação, especulando com o dólar, criando um perigoso mercado
paralelo para a moeda estadunidense.
Na Bolívia, Evo Morales passou a apostar na lógica do
neodesenvolvimentismo, puxada pelo Brasil. Projetos grandiosos com construtoras
estrangeiras (brasileiras) e o crescente conflito com as comunidades indígenas.
No Equador, Rafael Correa foi mordido pela mosca azul e abraçou-se às
mineradoras e as grandes empresas do petróleo. Tem mantido fogo cerrado contra
os povos indígenas, acusando-os de barrar o progresso do país e entrou de
cabeça na mesma onda do “desenvolvimento” a qualquer custo. O modelo é o mesmo
do Brasil. Reforma sem vestígios de revolução.
A morte de Chávez de certa forma liberou os aliados para uma virada de
timão, mais ao estilo do Brasil. Aquilo que Lula não conseguiu, já que era
frequentemente ofuscado por Chávez, Dilma logrou. Não tanto pela ação dela, mas
porque agora os mandatários vizinhos estavam mais livres para fugir da rota
socialista. Daí que se configura inegável o papel de liderança que o presidente
venezuelano exercia em todo o continente. Tanto que as proposta de uma aliança
com o Caribe e a construção da Unasur foram constituídas a partir de suas
investidas. A união das repúblicas latino-americanas era um sul determinado por
ele e, num período de crise na região europeia assim como nos Estados Unidos,
foi e continua sendo uma alternativa muito conveniente para os países da
América Latina. Mas, apesar de essas propostas seguirem vivas e atuantes,
é fato que perderam força política. Os encontros continuam, as instituições
também, mas não há uma liderança capaz de articular as ações econômicas com o
debate teórico. A última reunião da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa
América (Alba) foi um bom exemplo. Realizada em Caracas no último dia 17
de dezembro, não mereceu sequer uma nota nos jornais. Falta a grandiloquência
de um projeto totalizante de combate ao capitalismo.
O professor Nildo Ouriques, do Instituto de Estudos Latino-Americanos,
analisa a Venezuela hoje, sob o comando de Nicolás Maduro, e não tem dúvidas de
que o processo revolucionário, por agora, se esgotou. “O fato de o partido do
governo ter ganhado as eleições municipais agora em dezembro não diz muito. Nos
pequenos municípios a política do partido está consolidada. Mas, nos grandes,
não. Daí que a direita avança por aí. Maduro não tem a força de Chávez para
mudar o rumo dos acontecimentos e talvez nem mesmo Chávez pudesse fazê-lo. Pode
até ser que o bolivarianismo siga no poder por algum tempo – e é bom que siga
- mas não haverá mais mudanças radicais e o povo ficará cada vez mais
fora do poder de decisão”. Segundo Nildo, a inflação galopante que tem assolado
o país e a criação de um mercado paralelo do dólar enfraquecem a economia e a
tendência é de que, a seguir essa política, a situação econômica se agrave
ainda mais. O empresariado local não tem interesse na produção, está lucrando
de forma astronômica com o dólar. E, sem produção, o país segue dependente. É
um círculo vicioso e sem saída. A menos que houvesse uma virada de curso. Mas
isso não se vislumbra.
Nos demais países, a falta de um discurso forte acerca do caminho para o
socialismo ou qualquer outra forma diferente de organizar a vida, coloca todo
mundo - em maior ou menor grau - na posição de "humanizar" o
capitalismo. No Brasil, algumas políticas públicas asseguram renda aos
mais pobres, o programa Mais Médicos surge como um importante paliativo de
saúde para os fundões do país. Mas, por outro lado, o agronegócio está cada vez
mais abraçado ao governo, deitando e rolando no ataque aos indígenas e aos que
pretendem colocar qualquer freio a nova expansão da monocultura. Vive-se uma investida
anti-indígena só comparada a caminhada para o norte no início do século XX. No
Uruguai, apesar de passos importantes como o ataque ao narcotráfico e a busca
por uma democratização da mídia, Mujica permite a ação nefasta das papeleiras e
de outras grandes crias do capital. Na Bolívia, na última quarta-feira (18.12),
chegou-se ao extremo de reprimir, com gás e força policial, uma manifestação de
crianças, que marchavam por um código do menor. No Equador, Correa está rendido
às petroleiras.
Na verdade, toda a proposta de soberania e anti-colonialismo contida no
bolivarianismo parece se esvair. Os mandatários ditos “progressistas” não
conseguem sair da roda da dependência. Preferem o acordo com o capital
especulativo e com as mega empresas transnacionais, para tentar algum respiro
do que chamam “desenvolvimento”. Aplicam políticas compensatórias que até são
importantes, a considerar a extrema pobreza que vivem as maiorias, mas que não
parecem capazes de romper com o ciclo de uma quase perpétua subserviência. O
máximo que conseguem é o que já apontava Gunder Frank: o desenvolvimento do
subdesenvolvimento, o que permite algumas ilhas de riqueza, um certo incremento
no consumo através da liberação de crédito, mas praticamente nenhuma mudança
estrutural. Para os protagonistas de lutas importantes contra o capital, como é
o caso dos bolivianos que viveram as guerras da água e do gás, esses governos,
mascarados de esquerda, acabam prestando um desserviço à luta anticapitalista.
"Eles domesticam o movimento social, seguram os movimentos de luta,
cooptam lideranças, disseminam uma mensagem falsa sobre as possibilidades de
melhorias dentro do sistema. Assim, retrocedemos décadas. É uma tragédia",
afirma Oscar Olivera, uma das mais importantes lideranças da Guerra da Água, em
Cochabamba,
Nos dias de hoje, sem a presença vigorosa de um Fidel, ou a trovejante
ousadia de Chávez, o que parece avançar é a acomodação ao velho modelo de
dependência e de cooperação com o capital. Mas, ainda assim, a falta de uma
alternativa também abre caminho para a construção de outro ciclo, talvez um
pachakuti (o mundo de patas para cima, uma viração), como dizem os povos
andinos. Algum novo giro, uma nova tendência, uma surpresa, como foi Chávez e
seu sonho bolivariano. No final dos anos 90 essa novidade veio de onde ninguém
esperava. Agora, enquanto o mundo mergulha no frisson das novas tecnologias, da
inserção internética, no reino das sensações, talvez, em algum lugar não
sabido, completamente inaudito, esteja brotando o que virá. As lutas não
acabam, seguem seu caminho. Os movimentos continuam protagonizando resistência
e, afinal, os povos sempre aprendem quando vivenciam experiências
alvissareiras, como as que afloraram na última década. Algo novo há de
aparecer.
Assim, seguimos!...
* Jornalista
de Florianópolis/SC
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