No escurinho do cinema
Por Daniel Santos
Durante
toda a manhã, a mulher distribuiu cópias do currículo pelas empresas do centro
da cidade, sob um sol que lhe aferroava nuca e têmporas, enquanto o sapato
mordia no calcanhar como cão raivoso.
Realidade
demais para quem precisava sonhar; com a conquista de um emprego, por exemplo.
Por isso, nada comeu à hora do almoço, mas enfiou-se no cinema com uma lata de
refrigerante para amenizar o calor.
Já
descalça, olhos fixos na tela, recostou-se gostosamente e bebia a pequenos
goles para fazer render o bom. Tamanho o prazer que quase pegou no sono, mas
houve um sobressalto: algo pulara em seu colo!
Um
gato, um amoroso filhote de gato! A mulher acomodou-o no assento ao lado e
adormeceu acariciando-lhe o pêlo. Sem consciência do quanto dormira, despertou,
mais tarde, com uma forte patada na mão.
Assustada,
aprumou-se e viu que o companheiro se evadira para a última fileira de
poltronas, onde nem o reflexo da tela alcançava. Seguiu-o e, de fato, apesar do
escuro, viu que um olhar flamejante a chamava.
Olhos
grandes demais para um filhote, mas ... Ao estender a mão para acarinhá-lo,
duas patas poderosas agarraram-na, as unhas quase sangrando-lhe as costas e uma
língua áspera penetrando seus lábios!
Quis
gritar, mas não resistiu à imantação daquele corpo elástico nem à eletricidade
dos bigodes. E, aí, perdeu os sentidos. Nunca chegou a sentir quantos dentes o
apetite (o mais avaro) investe na saciedade.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Um mistério gritante, ou miante. Um louco mistério.
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