quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os contos de Bernardo Kucinski

* Por Marco Albertim

A primeira narrativa de Você vai voltar para mim, título do primeiro livro de contos de Bernardo Kucinski, não tem o envoltório do gênero. Não em sua cepa tradicional, a mais bela – Machado, Tchekhov, Maupassant -, mas surpreende pelo inusitado.

O narrador oculto, supõe-se o próprio Kucinski, vale-se de outro também oculto, ainda que referido como materialista, para reproduzir a experiência da Beata Vavá, da Bahia, que fora avisada pela imagem do Cristo sangrando, de que seu filho Anésio estava sendo torturado. A negra vai ao presídio, não evita a tortura no filho de 22 anos, mas livra-o da morte certa. O autor consegue repassar o clima de estupor de quem ouve num recinto onde não se fala noutro assunto, e se deixa inebriar pela extrassensorialidade da ialorixá. 

Os 28 contos não se arrastam nas mais de 180 páginas do livro. São narrativas curtas, nem por isso são banais. Progridem em escala de ascensão conforme a grandeza de cada um. A narrativa que dá nome ao livro, distingue-se no entremeio das histórias. A personagem é torturada no Dops. Enviada para audiência na Justiça Militar, o torturador adverte-a de não revelar que fora torturada. Ela revela ante a juízes de verde-oliva, impassíveis. Tem a promessa em documento de que não voltará para o DOPS, e sim para o presídio. Volta para o Dops. O torturador recebe-a com o afago sinistro – Você vai voltar para mim. Três páginas que destilam violência, cinismo e a cumplicidade inconfessa de oficiais da Justiça Militar.

Em O velório, o velho Antunes escolhe um bonito modelo de caixão para enterrar o filho tido como morto, mesmo com a ausência do corpo. No caixão, apenas um paletó e um par de sapatos de Roberto. O velório é prosaico, porquanto circulam bandejas com sanduíches, broas de milho e cuscuz de sardinha. Os músicas reverenciam o retrato de Roberto na parede, saem para tocar uma toada triste em frente a casa. O farmacêutico Diogo distrai-se contando causos na sala. Um álbum de fotografias circula. Os violeiros vão para o quintal, onde Alcebíades, um churrasqueiro fanático, faz a carne arder e sangrar sobre as brasas do carvão. O desaparecimento de Roberto, sumido pelos militares, depois de anos mistura-se à rotina ordinária da família e vizinhos.

Kadish para um dirigente comunista é título controverso, por isso mesmo atraente num conto. Davi, o rabino, é convidado para oficiar o sepultamento de seu amigo e militante comunista, Alberto Molina. Os dois, comunistas no mesmo partido. No ato do sepultamento, o kadish é cantado pelos judeus. Os comunistas da homenagem póstuma constrangem-se. Davi, num arroubo ecumênico, entoa a Internacional. O hino vibra no coral improvisado.

O autor resgata a polêmica ocorrida entre Davi e Alberto Molina, em que este interpela Davi sobre sua súbita opção rabínica, se fora resultante de uma crise ideológica, após a queda do muro de Berlim. O rabino explica que não dera as costas ao socialismo, só aos seus dogmas; é aqui que o autor se deixa falar pela confissão do rabino.

A instalação é uma narrativa tão curta quanto um estilete de pouco tamanho e ponta finíssima. Nair, ex-presa política, torturada e ainda com sequelas na sobrancelha e no tendão, resultantes do pau de arara, conhece a prima que nunca vira, filha de um irmão de seu pai. A prima mora num casarão solitário. Nos fundos da casa há um pomar – aqui a narrativa adquire tons de cores alegres e ar festivo. “... um fogão fora de uso, de alvenaria e cimentado vermelho, servia de suporte a uma montagem inusitada...” Enfim uma decoração de bom gosto, urde Nair. Pergunta à prima do que se trata. Vale a pena reproduzir a entonação prosaica na resposta:
- É lembrança do meu marido; é o pau de arara que o Oswaldo ganhou dos colegas quando se aposentou da polícia.

O autor, para o desfecho, socorre-se no começo da narrativa, em que dera conta do “beliscar pesado dos tiques na sobrancelha” de Nair.

Você vai voltar para mim é livro para ser lido de um só fôlego. Está amparado na história contemporânea do país, e assenta-se com propriedade nos 50 anos do golpe militar de abril de 1964.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.


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