Pelas
costas
* Por Gustavo Carmo
Reginaldo acordou com a irmã lhe
chamando de vagabundo e preguiçoso. Já estava acostumado. A moça, que é médica,
se orgulhava em dizer que trabalhou duro desde os vinte anos (tinha trinta e
cinco) e levava dinheiro para casa, enquanto o irmão de trinta, nunca trabalhou
e não demonstrava o mínimo interesse em trabalhar. Vivia
à toa, às custas do pai e da mãe, ficava o dia inteiro pendurado na internet,
dormia de madrugada, acordava no sofá, ia para cama e só acordava de verdade ao
meio-dia.
Todos os dias a irmã saía do
trabalho, aos gritos, já estressada. Dia sim, dia não, ela falava tudo isso e
outras coisas do irmão mais novo, que reagia aos gritos e pontapés. Mas se
acostumou com o tempo. Sua irmã era o alarme que ele não precisava para acordar
cedo.
Neste dia levantou-se após ouvir
a irmã chamá-lo de vagabundo e preguiçoso. Irônico perguntou para a mãe:
— A minha irmã saiu me xingando
mais uma vez, não foi?
— Não. Ela saiu bem cedo hoje. Eu
ainda estava dormindo.
— Então ela falou para o meu pai.
— O seu pai nem dormiu em casa
ontem.
— Então para quem ela disse que
eu era vagabundo e preguiçoso? Pergunta Reginaldo, estranhando.
— Você deve ter sonhado, meu
filho.
Reginaldo concordou com a mãe.
Foi fazer um pagamento que o seu pai havia mandado na antevéspera. Antes, quando
estava no banho, ouviu a vizinha de baixo falar mal dele para o marido.
— Você não acha que o Reginaldo
do 403 não está muito grandinho para viver às custas do pai? Ele precisa arrumar
um emprego e não ficar em casa explorando a mãe. A Dona Clotilde, coitada,
desce todo dia, faça chuva ou faça sol, com aquela idade avançada para comprar
pão para ele.
— Ela é mãe, Isadora. Mãe faz
tudo pelo filho! Não importa a idade.
— Mas ele nunca procura um
emprego.
— Vai ver que não conseguiu!
Deixa ele. Eu acho que ele é meio doentinho da cabeça, coitado.
As palavras dos vizinhos por quais
tinha a maior admiração o deixou completamente aborrecido. Continuou o seu
banho. Ouviu a vizinha antipática e fofoqueira – inventora de histórias - do 104
falar ao telefone que tem um vizinho de trinta anos que explora os pais e
principalmente a mãe. Disse que já ouviu o rapaz gritar com a mãe diversas
vezes e que na próxima o denunciaria com base no Estatuto do Idoso. Reginaldo
não se surpreendeu e pensou. “Sabia que essa aí não gostava mesmo de mim”.
Já pronto para sair, a mãe lhe
pediu que comprasse detergente, sabão em pó, uma vassoura, tomate e farinha.
Reginaldo respondeu OK com a voz embargada e saiu batendo a porta.
Antes de sair à rua, desceu um
andar, tocou a campainha do 304 e foi atendido com simpatia pelo Seu Rubens.
Simpatia agora falsa para Reginaldo, que disfarçou a sua raiva e chamou por
Dona Isadora. Esta lhe atendeu ainda mais amável.
— Ooooi meu querido!!! Como vai?
E a sua mãe?
Quando ia abraçar o vizinho que
viu crescer e nascer, Reginaldo rejeitou o gesto e esbravejou:
— A minha mãe vai muito bem, sua
falsa! Eu não trabalho porque ainda não consegui emprego e ela vai à padaria
sob chuva porque quer. Eu não obrigo ninguém ir à padaria para mim!
Dona Isadora ficou escandalizada.
— Quê isso, menino! O que eu fiz
contra você para ser tratada assim com essa estupidez?
— Eu ouvi a senhora falar mal de
mim e dizer que eu exploro os meus pais! Eu não exploro ninguém. Mas, se fosse
verdade, a senhora não tem nada a ver com isso!
— Ponha-se daqui pra fora
imediatamente! Bem que já me falaram mal de você sim, seu vagabundo!
— O que é isso, meu filho? Nós
sempre te tratamos com carinho desde que você nasceu. Interveio seu Rubens,
assustado.
— Eu sei, senhor Rubens. Mas eu
não sou doentinho não, tá? Mesmo que eu seja, o senhor deve me respeitar!
Reginaldo saiu enfurecido e
desceu para o 104. Foi atendido com o mau-humor habitual de Dona Mercedes.
— O que você quer? Nunca veio
aqui!
Entregando o próprio celular,
disse:
— Vim te dar a oportunidade de me
denunciar à polícia por maus-tratos contra a minha mãe com base no Estatuto do
Idoso. E se a senhora quiser se fazer de vítima também, sinta-se à vontade.
— Está maluco? Quem é você para
invadir a minha casa com essas ironias? É um playboyzinho barato que vive às
custas dos pais, sim! Eu tinha certeza! Mas não vou denunciá-lo em respeito aos
seus pais a quem eu admiro tanto. Não quero vê-los sofrendo vendo um filho na
cadeia por um motivo torpe! Mesmo que você mereça! Suma da minha frente!
Desceu, foi cumprimentado pelo
porteiro que não teve resposta. Seu Gilson insistiu e levou um fora.
— Bom dia uma ova, seu traidor!
Eu ouvi no elevador você falando para o porteiro do prédio do lado que eu era
gay e que não quero trabalhar! Gay é a tua mãe, seu safado!
O porteiro ia reagir, mas foi
contido pela faxineira que chegava para trabalhar no apartamento 502. Reginaldo
foi embora para o banco em Copacabana.
No caminho parou para comer um
pastel na lanchonete de costume. Pediu um refrigerante. Depois que acabou de
comer e foi embora, ouviu, quase chegando ao banco, o balconista comentar com o
outro:
— Esse cara vem sempre aqui e
come a mesma coisa. Desse jeito ele vai acabar obeso! E riram dele.
Reginaldo pagou o documento e ao
sair, ouviu as duas belas caixas falarem dele.
— Esse cara é feio, mal-arrumado.
Cara de maluco.
— É. Ele é cheio de espinhas.
Rosto oleoso. Deve feder.
O rapaz voltou para o banco e
disse para a caixa morena:
— Saiba você que eu não sou
personagem de novela para sair de casa, andar a pé desde a Barata Ribeiro até
aqui, em pleno verão carioca, para chegar limpinho e perfumado a esse banco com
mau-atendimento. E quanto a você, se eu sou feio, mal-arrumado e tenho cara de
maluco, tem muita gente que gosta, tá? Sua mal-amada!
Voltou a lanchonete onde comeu o
pastel e disse ao balconista que o atendeu:
— Esta é a última vez que venho
aqui. Vou seguir a sua recomendação e fazer uma dieta.
Decidiu caminhar no calçadão para
fugir de tantas críticas pelas costas. Ouviu o jornaleiro comentar com o
cliente que há quatro semanas ele pergunta pela mesma revista de automóveis.
Ouviu o outro achar que suas espinhas são por excesso de masturbação. A irmã
novamente o chamou de retardado e vagabundo. O cunhado comentou com um colega
de trabalho que ele tem um problema de amadurecimento. Mesmo comentário fez o
primo mais velho. O outro primo falou que o livro que publicou era mal escrito,
mas que elogiava só para agradá-lo. Os editores confessaram estar com vergonha
do livro horroroso dele e decidiram diminuir gradualmente até parar por
completo. Umas duas ex-colegas da segunda faculdade, que não gostavam muito
dele, resolveram lembrar de Reginaldo e perguntaram se ele ainda era bobo
daquele jeito. Um rapaz respondeu que estava pior. Operou a vista, mas estava
sujo como sempre. Estava tão louco que esbravejava com todo mundo,
principalmente com ele. E ainda comentaram do livro infantil, mal escrito e
horroroso, com vários erros de português, que ele escreveu.
Ouviu ainda os amigos da primeira faculdade e
da pós-graduação dizerem que sentem pena dele. O coordenador do mestrado pedir
ao professor que aprovasse Reginaldo só para não deixá-lo magoado, pois o
trabalho final que fez estava péssimo e merecia uma nota bem baixa. Professor e
colegas de uma oficina literária comentaram que ele falava tão mal nas aulas
que parecia uma pessoa com deficiência mental. E que não sabia nem defender os
contos sem nexo que ele escrevia. O pai dizer que ia expulsá-lo de casa se não
arrumasse um emprego ou fazer um concurso público. A bela vizinha do 301,
jornalista, comentar com o marido que queria se mudar do prédio porque Reginaldo
a via diariamente, todas as horas, pela janela, chegando de carro, como se a
vigiasse. O marido dizendo que ia ter uma conversa séria com ele. Dona Isadora,
Seu Rubens, Dona Mercedes e o porteiro Gilson foram queixar-se com sua mãe,
Dona Clotilde, das ofensas que Reginaldo fez durante a manhã.
Já Reginaldo continuou andando
por Copacabana para fugir do tormento cada vez mais crescente das pessoas que o
criticavam pelas costas.
* Jornalista
e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias
que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos -
Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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