Para a morte!
* Por Júlia Lopes de Almeida
Dizem que
não há na mesma árvore duas folhas iguais e que as próprias flores, bem
comparadas, divergem entre si, ou na forma, ou no colorido, ou no aroma.
É uma
diferença quase imperceptível e só apreendida pela vista e o olfato argutos de
um botânico estudioso e observador.
Quer isto
dizer que no fundo da sua natureza misteriosa, a própria planta tem também os
seus desacordos impenetráveis...
Como as
folhas da mesma árvore, irmãs! somos todas dissemelhantes, e como as folhas
somos levadas ou pela aragem doce que nos atira para a veludosa alfombra aos
pés da própria árvore; ou pela lufada do temporal, que nos impele para a terra
em torvelinho ou para as águas torrenciais!
Que culpa
temos nós de ficarmos aqui ou irmos para além, se somos levadas pelo vento?
Nos tempos
antigos, a mulher era calma, submissa, pacífica e retraída; mas seria tudo isso
por ter mais bom senso, mais felicidade e menos ambição? Não me parece. O
motivo devia ser outro; o motivo devia de estar na atmosfera que a envolvia e
em que não existia nenhum elemento agitador. Não somos nós que mudamos os dias,
são os dias que nos mudam a nós.
Tudo se
transforma, tudo acaba, tudo recomeça, criado pelo mesmo princípio, destinado
para o mesmo fim. Nascemos, morremos e no intervalo de uma e outra
ação, vivemos a vida que o nosso tempo nos impõe.
O que ele
impõe hodiernamente à mulher é o desprendimento dos preconceitos, a meta,
sempre dolorosa pela existência, o assalto às culminâncias em que os homens
dominam e de onde a repelem.
Mas, seja
qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá, por que não nasceu da
vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar.
A vida é
cada vez mais exigente, absorve todas as aptidões; quem a pode servir, serve-a,
e com isso só se enobrece, porque o trabalho nunca aviltou ninguém. Desde as
classes inferiores, em que as mulheres queimam as mãos nas barrelas e carregam
fardos, ou passam noites dobradas sobre as costuras. estragando os olhos e os
pulmões, até às professoras, as médicas, as negociantes, qual não terá a
consciência de sacrificar ao dever a sua alegria, o seu corpo, a sua mocidade?
Eu só não
posso reprimir um movimento de estupefação diante da mulher que liga o seu nome
a uma propaganda de extermínio e de sangue. Quando há tempos li o de Emma
Galdman, acusada de instigar a morte de Mac Kinley senti uma revolta n'alma e a
suspeita de que cometiam uma injustiça. Se em vez desse, viesse no mesmo lugar
um nome de homem eu não vibraria ao mesmo estremecimento.
Não leio
todos os dias notícias de mortes, de assassinatos e de crimes com igual direito
à minha compaixão? E tremo por isso? E atordôo com ela os ouvidos do meu
vizinho?
Absolutamente!
A intenção
de Emma, de bem fazer às classes oprimidas e de só abater os grandes para mais
livremente fazer circular os pequenos; a sua fé divina em um futuro de
pacificação e de harmonia, em que a fraternidade dos homens não seja uma
palavra vã, toda a generosidade do sonho em que ela afoga a sua alma de
alucinada, não lograram, ai de mim! convencer-me de que há desculpa para uma
mulher que só por via do mal procure fazer o bem.
Nem creio
que ela o propagasse assim. O papel mais difícil é e será sempre o da
conciliação, e é esse que todas as mulheres, mesmo as mais extremadas nos seus
ideais, deveriam desempenhar. O mundo está farto de sangue e de ódios, e à
espera de um bem, que tarda, e que o pacifique sem que para isso se amontoem
cadáveres nem se acrescente o número dos encarcerados.
Oh! se para
o triunfo do sonho anarquista, os fanáticos não quisessem a destruição; se a
sua obra libertadora não exigisse o dilúvio do sangue e a devastação das
cidades, como ele seria sedutor e desejado!
*
* *
Como todas
as revolucionárias, Emma esgotava-se em escritos e em conferências, levando de
terra em terra a chama da sua palavra incendiada; pregando as suas doutrinas
pelas cidades e vilas da União, perturbando os cérebros espessos de operários,
sujeitos, até ao dia nefasto de a ouvirem, com maior ou menor resignação, às
privações da sua dura sorte. Entretanto, ela, querendo iluminá-los,
plantava-lhes n'alma o descontentamento e a dor. A infelicidade que se ignora,
não é infelicidade.
No dia em
que foi executado o assassino de Mac Kinley alguma mulher o chorou como mulher;
e Emma sem consolar essa desconhecida, mãe, amante ou irmã do homem que perdeu,
sentiu naturalmente subir às suas pupilas ressequidas pela febre das vigílias e
do trabalho, uma lágrima de inexprimível inquietação.
A sua alma
de mulher pressentiu a outra mulher, aquela que não sabe ser no mundo outra
coisa, e que da vida só tem uma noção - a do amor!
A escritora
anarquista compreendeu que é bem espinhoso e duro o caminho por onde ela busca
a felicidade; mas acharia tarde para voltar, sentindo medo do caminho
percorrido. Assim, haja o que houver e sinta o que sentir, ela continuará...
Continuará,
lavada em lágrimas, ao sopro erradio do seu destino, com a folha ao vento
espalhando o seu aroma venenoso pelos caminhos das fábricas e os carreadouros
dos campos de lavoura. Ela continuará pregando e profetizando um bem
irrealizável.
Ela
continuará, e outros correrão a ouvi-la, e morrerão por cumprirem os seus
mandamentos, e serão chorados por mulheres que ainda não saibam ser outra coisa
no mundo... e na face serena da terra a inundação do sangue e das lágrimas não
mudará nunca a essência das coisas nem a dos seres!
*
* *
Sim, a culpa
é do tempo; é ele que obriga as mulheres a olharem para a vida com uma atenção
tão rude e tão penosa. Sentem-se muito sós, precisam trabalhar, para elas e
para as que nascem delas, porque a onda da miséria cresce, e mesmo as que não
se afogam nela, sentem-lhe os respingos amargos e a sua sombra pavorosa.
Oh,
certamente que não foi por mera e caprichosa fantasia que a mulher se despojou
das suas atribuições de ornamento para endurecer a alma e calejar as mãos na
lufa-lufa do trabalho angustioso e viril.
Elas
protestam, porque vão para ele de rastos, obrigadas pela necessidade urgente ou
atraídas pela corrente que puxa as demais para a mesma voragem dolorosa.
De resto,
bem sabem que nessa lida perdem a formosura a que renunciam, não sem tristeza,
porque o enleio da formosura é sedutor, mas com altiva resignação. Pois bem,
que tudo se arruine e se perca no mundo, menos a bondade da mulher, o seu
acoroçoamento para o bem e as suas expressões materiais e pacificadoras!
De que nos serve, febril Emma Galdman, aturdir-nos e criar-nos infinitas
visões de futuros impossíveis, se no fim de qualquer caminho por onde o destino
vário nos leve, vamos todos bater à mesma porta negra?
Crônica extraída do “Livro das donas e donzelas”
* Escritora fluminense
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