Quando a ficção se vale
da História
A História – aquela que
é considerada ciência, baseada em documentos e em descobertas arqueológicas –
tem se constituído, há muito, em farto (diria inesgotável) filão temático para
ficcionistas talentosos. Não é tarefa, todavia, para qualquer um. Escritores
criativos conseguem misturar personagens e situações ficcionais com fatos e
vultos históricos, sem descaracterizar um e nem outro. Fazem isso mediante
enredos paralelos que se cruzam (às vezes não) no desfecho. Cumprem, assim, simultaneamente,
dois dos muitos objetivos da leitura: instruem e entretêm.
Há “puristas”, quer no
campo da Literatura, quer (principalmente) no da História, que se opõem a esse
procedimento. Argumentam que essa mistura de ficção e de realidade confunde
quem lê e distorce os acontecimentos reais. Tolice. Isso vai da perícia, da
competência e da criatividade de quem recorre a esse filão. Por isso, fiz a ressalva
que a tarefa não é para qualquer um. É desafio para os melhores. Tenho, na
minha biblioteca, dezenas de livros com essas características. Tivesse tempo e
não fosse premido pelo relógio para escrever em tempo hábil essas reflexões
diárias, relacionaria pelo menos as principais obras que seguem essa empolgante
trilha. Como não tenho, vou meio que ao acaso e menciono alguns livros que
consigo enxergar à distância nas estantes mais visíveis da minha biblioteca.
Cito, por exemplo, “Eu,
Claudius, o imperador”, de Robert Graves, publicado pela Abril Cultural, com
magnífica tradução de Mário Quintana. A narrativa propõe-se a ser uma espécie
de “autobiografia” desse pitoresco governante romano, ridicularizado até por
historiadores meticulosos e sérios, por sua deficiência física (era coxo), sua
timidez e conrundente gagueira. Mas, principalmente, pelas aventuras sexuais de
sua insaciável esposa, Messalina. Aliás, muito do que se lê sobre essa mulher,
pintada como incurável ninfomaníaca, dessas de manterem dezenas de relações
sexuais num único dia e ainda quererem mais, entendo que se trate de fantasia.
Como um historiador pode documentar com precisão a vida íntima, sobretudo a
sexual, de determinada mulher, ainda mais se tratando da esposa de um imperador?
Não pode! Baseia-se, pois, em boatos e no que conhecemos como “fofocas” a
propósito. Mas daí a jurar que se trate de lídima expressão da verdade vai uma
distância sem tamanho.
Aliás, a propósito
dessa imperatriz romana, esposa do difamado Claudius, que no entanto tem feitos
notáveis em seu currículo como poucos imperadores puderam ostentar, vislumbro,
à distância, numa das prateleiras da minha biblioteca, o livro “Messalina”,
escrito por Siegfried Obermeier, lançado no Brasil pela Geração Editorial. Não
o interpreto como relato histórico, embora seja apresentado como sendo.
Considero-o, isso sim, deliciosa obra de ficção. Pelo menos, é um livro
divertido (ou pervertido?). É leitura que recomendo para os que entendem que
arte (no caso Literatura) e moral são compartimentos distintos, que nada têm a
ver um com o outro. Se você, caríssimo leitor, tiver um dinheirinho extra,
compre esse livro. Se vai aprender algo, não posso jurar. Mas garanto que irá
se divertir.
É óbvio que romances
baseados em fatos históricos não se restringem aos dois que citei. Só na minha
biblioteca, tenho dezenas deles. Cito, por exemplo, dois da dupla francesa
Émile Erkmann e Alexandre Chatrian (sobre cuja parceria tratei aqui mesmo,
neste espaço, se não me falha a memória, em 2011). Ambos escreveram, em
conjunto, 21 livros, todos mais ou menos nessa linha. Os dois mais conhecidos,
ambos tratando do conquistador francês Napoleão Bonaparte, têm os respectivos
títulos, na versão em português de “O recruta de Napoleão” e “Waterloo”. Nesse
contexto, não posso esquecer de “Guerra e paz”, de Leon Tolstoi ou de “Doutor Jivago”,
de Bóris Pasternak.
No Brasil, também temos
dezenas de escritores que recorreram, com sucesso, a esse inesgotável filão.
Cito, por exemplo, Paulo Setúbal, de quem tenho quase toda a obra (poética e
ficcional), notadamente os livros “Os irmãos Leme” (tratando da trajetória do
bandeirante Fernão Dias Paes Leme e de seu mano, cujo nome me foge) e “As
maluquices do imperador”, em que narra, de forma romanceada e deliciosa, as
estripulias de Dom Pedro I, antes de proclamar a independência do Brasil e após
a proclamação, mas antes de abdicar do trono, retornar a Portugal, derrotar seu
irmão Dom Miguel e tornar-se rei português, com o título de Dom Pedro IV.
Um dos melhores
romances nessa linha, mesmo baseado em um fato histórico exclusivamente nosso,
bem brasileiro, pitorescamente foi escrito por um estrangeiro, mais
especificamente por um peruano, tão bom escritor que recebeu, não faz muito, o
Prêmio Nobel de Literatura. O leitor arguto já percebeu a quem me refiro. É a
ele mesmo, a Mário Vargas Llosa. É imperdível o seu livro “A guerra do fim do
mundo”, em que trata da rebelião popular de jagunços no arraial de Canudos. O
exército brasileiro teve que recorrer ao que tinha de melhor em termos de
armamentos e de estratégia militar, para debelar a rebelião no sertão baiano,
liderada pelo fanático carola Antonio Conselheiro, alçado à condição de semi-divindade
por seus seguidores.
Vargas Llosa, com rara
maestria, tratou de personagens reais e criou outros tantos fictícios, porém
verossímeis. Descreveu tanto fatos históricos, fartamente documentados, sobretudo
pelo repórter especial do jornal “O Estado de São Paulo”, o engenheiro-escritor
Euclides da Cunha, quanto os que inventou e que parecem rigorosamente
verídicos, tamanha a convicção com que tratou deles. Se o escritor peruano não
houvesse escrito mais nada além de somente esse livro já justificaria o Nobel
de Literatura com que foi agraciado. Para quem aprecia textos bem escritos e
informativos (e creio que apenas os tolos e os analfabetos não apreciem),
recomendo a leitura, na sequência, de “Os sertões”, de Euclides da Cinha e a
seguir da “A guerra do fim do mundo”, de Mário Vargas Llosa. Prometo voltar
oportunamente ao tema.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Preciso vencer "Os sertões", mas é algo quase intransponível com descrições sobre a geografia do lugar de forma tão detalhada, rebuscada e técnica, que só com muita paciência para avançar. Seu editorial me deu nova luz, Pedro. Vou tentar.
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