Catedrais de barro
* Por
Nilto Maciel
O mal de certa gente
afeita a redigir, na hora de lapidar seus contos e poemas, é torná-los quase
enigmáticos. Não, não é certo usar esse “quase”. Na verdade, se convertem em
signos indecifráveis, semelhantes a fórmulas, ao mesmo tempo cabalísticas e matemáticas.
Conheço muitas dessas pessoas de aparência normal (nada de cabeças
desproporcionais, antenas verdes plantadas na testa, como aqueles
extraterrestres de Hollywood). São idênticas a nós: leem Machado de Assis,
Fernando Pessoa, Graciliano Ramos e também Kafka e Joyce (em português). Vão a
cinemas, teatros, ouvem música clássica, chorinho, Luís Gonzaga. Tomam chope,
conhecem mulheres ou homens, gostam de feijoada, baião de dois e pizza. São
quase (aqui cabe o advérbio) iguais aos outros seres humanos. Quando não chegam
a tanto, se parecem com escritores.
Ficcionistas novos (na
idade) ou principiantes (alguns se iniciam na arte de escrever depois de
maduros, aposentados, desiludidos dos prazeres da carne, do vinho, do queijo e
dos doces) me mandam contos e poemas (devo agradecer aos céus por não
produzirem aqueles romances enormes ou aquelas novelas intermináveis) e pedem
opinião. Com enfado, corto aqui, podo ali, e, cansado, sugiro revisão
gramatical. Também me tratam assim, com essa preocupação profilática, meus
amigos mais adestrados no ofício de burilar (não escrevi burlar) frases,
professores de gramática e língua portuguesa, todos de extrema erudição. Acato
suas sugestões, embora nem sempre consiga efetuar a emundação proposta. Não me
zango com eles; pelo contrário, sou-lhes grato. Não fossem eles, quantas
barbaridades eu teria publicado!
Entretanto, os
pimpolhos e os senhores a quem me referi se inflamam comigo. Uns deixam de me
cumprimentar e saem por aí, zangadíssimos, a me achincalhar: sujeitinho metido
a intelectual, escritorzinho sem cabedal, desconhecido até da própria
família. Até imagino suas
infantilidades: rasgam, queimam, jogam fora os livros de mim recebidos em
doação paternal.
Aprendi duas ou três
lições de podadura verbal. Não apenas no uso da língua, mas também na
elaboração de um estilo e escolha e tratamento dos temas. Não propagarei os
nomes de meus mestres, como não informarei os apelidos dos meus insolentes
“alunos”.
Uma delas diz respeito
ao uso reiterado de vocábulos, na mesma frase, na mesma oração, no mesmo
parágrafo, na mesma página. Em meus escritos encontrei milhares de “mas”,
“porém”, “estava”, “era”, “que”, “pôs”, etc. Alertaram-me desse pecado meus
amigos. Como não se trata de erro ortográfico (é só defeito de estilo), não dei
importância ao carão. Além disso, até nos grandes criadores são encontradas
repetências sucessivas de vocábulos e expressões. Vejamos este trecho de Dom
Casmurro: “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em
tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os
outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto
eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à
pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito
externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão
que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os
documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente;
todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas,
algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade.
Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez
a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. Entretanto, vida
diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela
vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também
exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo
alguma recordação doce e feiticeira”. O
termo “que” aparece onze vezes; “mas”, quatro vezes.
Além de evitar a
repetição de vocábulos, devemos nos esquivar de expressões reproduzidas em
demasia, transformadas em clichês, os ditados, sem falar nos termos chulos e da
moda, as gírias, os jargões.
Assim também devemos
nos comportar em relação às descrições desnecessárias, às narrações de gestos e
atos insignificantes (para a trama), aos adjetivos que servem de mero adorno,
sobretudo os qualificativos de ordem moral (especificamente no caso de narrador
onisciente). O estilo se faz mais límpido e agradável, se nos dedicarmos a um
trabalho de remoção de entulhos nos diálogos. Precisamos extirpar as falas
inúteis, se nada acrescentam à compreensão da narrativa. Chamemos a isso de
benfeitorias. Encurtar a fala do personagem tagarela é sempre salutar. Isso
pode ser feito com a transposição do diálogo direto para o indireto e, ainda,
com o não emprego dos desagradáveis verbos dicendi. A frase deve ser clara.
Nada de deixar o leitor em dúvida. Ou dar a tudo duplo sentido, como a chamar o
leitor de idiota.
Entretanto (volto ao
início desta crônica), não é preciso ser purista, seguir as normas gramaticais
ao pé da letra, escrever à maneira de Camões, Bernardes, Vieira, Castilho. Ou,
pior ainda, aprimorar tanto o estilo, a frase, que o leitor terminará por nada
entender ou por se enredar todo nas malhas de um fraseado excessivamente
obscuro. Sentir-se-á enjoado de tanto malabarismo verbal, de tanto neologismo,
de tanta invencionice. O pior de tudo, porém, se dá quando o escriba se imagina
bem diferente de todos os outros. Acima dos demais, como se escrevesse para
deuses, gênios ou seres imaginários. Objetiva ser enigmista, ininteligível,
ilegível. Certamente tenciona se afastar dos recursos gramaticais e
estilísticos, romper todas as barreiras, ser o anti-Machado, o anti-Graciliano,
o anti-Pessoa. Corre de medo de frases assim: “Uma noite destas, vindo da
cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do
bairro, que eu conheço de vista e de chapéu” (Dom Casmurro). Ou desse modo: “Na
planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes (Vidas secas).
Ou de Fernando Pessoa: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu
era feliz e ninguém estava morto” (“Aniversário”). Fogem da difícil
simplicidade!
Portanto, nem desleixo,
nem esmero demasiado. Um é pobre, feio, sem arte. O outro é similar ao falso
rico: “tem” mansão (só a fachada), carro importado (alugado por uma semana),
jatinho (emprestado). São catedrais de barro. E isso não é arte, é falsidade, é
logro.
Fortaleza, 19/20 de
fevereiro de 2013.
* Escritor cearense.
Fonte: “Literatura sem Fronteiras”
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