Pulos e torrão de açúcar em busca do
inalcançável
* Por Anna Lee
Questão antiga e das mais
insolúveis é a relação do homem com o invisível, com o inalcançável, com o
Deus. Impulsionado pela incapacidade de aceitar a lógica própria da vida que o
torna barco à deriva, o homem não se entrega nunca. É um desesperado em busca
do controle dos acontecimentos e, muitas vezes, tenta se fazer senhor absoluto
da terra, do céu e do mar. Ainda que saiba que, de longe, a morte o espreita.
Que um dia ela virá, implacável, e ele não poderá evitá-la.
O “world
jump day”, na quarta-feira passada, foi uma evidente brincadeira, mas,
mesmo assim, serviu de retrato do desejo patético de onipotência que domina a
existência humana. A história era mais ou menos essa: exatamente
às 7h39m13s (horário de Brasília) – se bem que li outras versões em que o
horário estipulado era de 8h39m13s – 600 milhões de pessoas deveriam pular no
hemisfério ocidental para que a terra mudasse sua órbita. Com isso, nosso
planeta seria afastado um pouco mais do sol e o problema do aquecimento global
seria resolvido. O evento foi uma gaiatice lançada na Internet que, pelo sim,
pelo não, muitas pessoas aderiram. Quando vi a foto de um grupo que participou
da brincadeira na Suíça, lembrei de um personagem do Cortázar.
Desde a
infância, sempre que deixava cair alguma coisa no chão, ele se obrigava a
apanhá-la imediatamente, fosse o que fosse, pois sentia que se não agisse dessa
forma, alguma desgraça aconteceria não a ele, mas alguém de quem gostava e cujo
nome começava com a inicial do objeto caído.
Teve um
dia em que estava num restaurante com um grupo e deixou cair um torrão de
açúcar, que – contrariando a natureza dos torrões de açúcar que ficam quietos
logo que tocam o chão – rolou para debaixo de uma mesa qualquer bem longe da
que ele se encontrava.
Os
amigos que o conheciam bem se entreolharam e riram. O que, apesar de tê-lo
feito sentir uma certa raiva, não foi capaz de demovê-lo da necessidade de ir
atrás do torrão de açúcar. Um dos garçons, percebendo o movimento diferente e
pensando que algo precioso havia desaparecido, ofereceu-se para ajudar o
cliente que, a esta altura, já se encontrava deitado no chão vasculhando canto
por canto do restaurante, inclusive, entre os sapatos das pessoas. Era terrível
o medo de que alguém pudesse esmagar o torrão de açúcar antes que ele pudesse
alcançá-lo.
Solidário
e ainda sem saber qual era a preciosidade que merecia tal esforço, o garçom
curvou-se no chão e os dois se transformaram em quadrúpedes rastejantes. Assim,
quando estavam bem debaixo de uma mesa, numa espécie de grande intimidade e
penumbra, o garçom lhe perguntou do que se tratava o objeto desaparecido e ele
respondeu.
O homem
ficou estupefato. Furioso, levantou-se imediatamente, enquanto ele, sem nenhuma
vontade de rir, desesperou-se ainda mais e começou a levantar os sapatos das
mulheres para averiguar se, por acaso, o torrão de açúcar não teria ficado
escondido no arco formado entre os saltos e as solas.
Ouvia
as gargalhadas dos amigos, enquanto movia-se de uma mesa para outra, até
encontrar o açúcar escondido atrás de um pé de mesa Segundo Império. E, então,
dominado pela fúria, com o açúcar metido na mão, sentiu o torrão se misturar ao
suor da pele, desfazendo-se asquerosamente numa espécie de vingança pegajosa.
Pulos
cotidianos em busca do inalcançável, que a morte comprazente vigia.
*Jornalista, mestranda em Literatura
Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da
Morte"/Objetiva, ganhador
do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na
Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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