Peso
inútil
* Por Pedro J. Bondaczuk
O homem carrega, ao longo da sua
curta vida, um peso inútil, que o impede de alçar amplos vôos espirituais e de
evoluir no sentido de se tornar, de fato, racional. Hoje ele ainda é, digamos,
apenas semi-racional (e isso, com muita boa vontade). Tem lampejos de
racionalidade, é certo, mas em cerca de 50% de suas atitudes (ou até mais), age
movido exclusivamente por instinto. Aproxima-se, pois, muito mais do animal que
é, do que da “imagem e semelhança de Deus”, que poderia ser.
E qual é essa carga
sobressalente, esse peso descartável, que tolhe seu crescimento espiritual? É a
ambição pelo que convencionou considerar “bens materiais”, que na verdade só
têm alguma utilidade (quando têm e na medida exata das necessidades) enquanto
viver. Sua posse, todavia, tem tamanho valor para o homem, ao ponto de
influenciar até a maneira como os designa. Tanto que um dos dogmas tido como
inquestionável, na maioria das sociedades, é o da “propriedade privada”.
Ninguém se refere a dinheiro,
ouro, terras, casas, carros e tantas e
tantas quinquilharias que despertam a ambição desenfreada da maioria como
“males materiais” (que, na verdade, são). Todos os designam como “bens”. Ou
seja, como coisas piedosas e benignas.
Desde criança (e já passei de
sete décadas de vida), nunca consegui entender o obsessivo apego das pessoas
por isso que rotulam de “riquezas”. Jamais, nenhum anjo, ou qualquer outro ser
superior que eventualmente exista, apareceu-me em sonhos, ou durante a vigília,
para me exibir algum documento de partilha do Planeta, em que sejam outorgadas
extensas áreas de terra a determinadas pessoas e sua descendência, em
detrimento da maioria.
Os bens da Terra, todos eles,
houvesse um mínimo de lógica no comportamento humano que justificasse sua
classificação como “animal racional”, deveriam ser patrimônios comuns.
Pertenceriam a todos os homens, indiscriminadamente. Claro que não são. Jamais
serão! E quem defende essa tese, a lógica das lógicas, recebe inúmeros rótulos
e epítetos, todos, claro, pejorativos.
É estereotipado, considerado
“comunista”, perseguido, encarcerado, não raro torturado e morto ou tido e
havido como “alienado”, ou louco (que é praticamente a mesma coisa) e segregado
do convívio geral. É uma inversão brutal e catastrófica de valores. Ou seja, o
são é tido por demente e vice-versa.
A distorção chega a tal ponto,
que os méritos de um indivíduo são definidos (de maneira praticamente
consensual) não pelo que ele é, em termos de sabedoria e virtudes, mas pelo que
tem, mesmo que se trate de rematado canalha, de incorrigível corrupto, de
ladrão convicto, que amealha posses às custas das desgraças alheias.
Erich Fromm escreveu um livro a
esse propósito, “Ter e Ser”, cujas teses sequer é necessário repetir. São
óbvias demais. Intuitivamente, as pessoas sabem que são corretas, mas se age
sempre em sentido contrário. Ou seja, invertem-se os valores: o correto é
apontado como errado e vice-versa.
Há poucas, escassíssimas, ínfimas
esperanças de mudança desse comportamento. Se acontecer (e se o homem não
destruir, antes, seu tão judiado, depredado e poluído domo cósmico), talvez
ocorra em um milênio ou mais. Não acredito, todavia, nessa revolução da
racionalidade.
Nas presentes gerações, não há o
menor indício de que esse súbito ataque de sabedoria e bom-senso venha a
ocorrer. A probabilidade parece ser exatamente a contrária. Ou seja, que o
homem se torne crescentemente mais ensandecido e obcecado pelo seu avassalador
egoísmo e que sua porcentagem de animalidade cresça vertiginosamente, com a
conseqüente redução, na mesma proporção, de sua já tão escassa “imagem e
semelhança com Deus”.
Quem tem, busca, obsessivamente,
não apenas conservar o que já juntou, mas juntar mais, e mais, e mais. Quem não
tem... empenha-se em se apossar, pela astúcia (às vezes) ou pela força (na
maior parte dos casos) do que os possuidores se empenham em proteger, não raro
com as próprias vidas. O homem não confia no homem e tem, no semelhante, a
visão de um antagonista, um rival, quando não um inconciliável inimigo ao qual
se propõe a destruir, em vez de ver nele um parceiro. E as coisas pioram, nesse
sentido, não mais de século para século, mas de dia para dia.
Já vão longe os tempos, por
exemplo, em que você podia se sentir seguro em sua casa, mantendo as portas
sempre abertas, escancaradas até, cerrando-as apenas à noite, para evitar a
entrada de animais. Hoje, há trancas por toda a parte. Há muros e grades
imensos, sofisticados sistemas de alarme, vigilância contínua por câmeras,
cercas elétricas etc. protegendo os seus “bens” do assédio dos despossuídos. E
estes, quando eventualmente saem dessa condição, e se tornam proprietários
(tremenda raridade), repetem, exatamente, os mesmos procedimentos dos que antes
condenavam. Não são, pois, nada melhores do que eles.
Rabindranath Tagore, com a
sensibilidade e a intuição dos poetas, que, salvo exceções, enxergam além das
aparências, escreveu estes versos memoráveis, em um de seus tantos poemas, que
ilustram a caráter estas considerações: “Coloque uma carga de ouro nas asas de
um pássaro e ele nunca mais voará pelo céu”. Imagine o homem, que já
normalmente não voa (a não ser com as engenhocas que criou)! Como voará na
amplidão infinita da racionalidade com tamanho peso descartável (do qual teima
em não se desfazer) nas costas?!
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Nos cinco anos e três meses que lutei com meu pai tetraplégico e que nem engolia, vítima de AVC, sentia-me amarrada a ele, e com muita vontade de voar. Dizia que quando ele se libertasse, eu adoraria estar de camiseta e short, e apenas um cartão de banco no bolso para as despesas mínimas necessárias. Acharam que eu tinha enlouquecido. Ele partiu há quatro anos. Não chego a tanto, mas simplifico bastante a minha vida. Nunca seremos sábios ao ponto de fazer o que sugere. Imaginei que o seu livro sobre a utopia falasse sobre isso. Ausência de posse. É certo?
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